por João Cerqueira
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Os personagens olham ou avançam em direção ao touro como se estivessem sujeitos a uma força gravítica. Enquanto este permanece sereno e equilibrado, as restantes figuras executam movimentos desconexos e demonstram pânico e sofrimento. O cavalo tenta inverter essa tendência, mas o seu pescoço sofre uma violenta torção que o obriga a acompanhar a marcha das outras personagens.
As poses teatrais das personagens femininas enfatizam o seu sofrimento: o tormento psicológico da mãe com o filho morto nos braços, a dor física da mulher queimada, e a estupefação da mulher que arrasta a perna.
Os personagens masculinos estão colocados do lado direito e representam opostos: a solidez do touro e a fragilidade do guerreiro. Este abre os braços como se estivesse crucificado e confunde-se com um matador de touros. A sua espada é o símbolo da desproporção de forças entre civis e exército».
À medida que vai ouvindo no podcast a explicação do quadro Guernica de Picasso, o interesse de Maria Petrova aumenta. Nunca pensara que uma pintura, sobretudo aquela pintura tão estranha e complicada, pudesse transmitir tanta informação. Mais ainda, nunca julgara possível que um quadro a pudesse transportar para dentro da tela. E é o que está a acontecer neste momento: Maria imagina-se a correr desesperada por ruas que estão a ser bombardeadas; ouve os gritos das vítimas e cheira o fumo dos incêndios; sente a dor da mulher queimada, o estupor da mulher que arrasta a perna e o desespero da mãe que perdeu o filho.
Guernica fá-la sofrer.
Maria engole em seco e corre-lhe uma lágrima pelo olho.
Ao seu lado, sentados no chão, um grupo de alunos de uma escola primária tenta desenhar as figuras do quadro com lápis de cores: o touro e o cavalo são os preferidos. Nem o homem nem as mulheres, são desenhados, como se, instintivamente, se quisessem afastar do sofrimento humano. E os animais recriados por estes meninos e meninas, além de ganharem coloridos esfuziantes, chegam a ter bocas que parecem sorrir; uma das crianças acrescenta-lhes uma espécie de lobo, preto e amarelo. Para eles, Guernica é pouco mais do que uma luta de desenhos animados. A professora protege-os do horror dizendo-lhes que os personagens de Guernica parecem fantasmas; mas, logo depois, acaba por os assemelhar a mortos-vivos. E ao dizer isto, fica ela própria a olhar para o quadro, perturbada, como se só agora tivesse entendido a sua mensagem.
Em 1936 uma fação do exército espanhol tenta derrubar o governo da Frente Popular liderado por Manuel Azaña. O golpe fracassa e transforma-se numa inesperada guerra civil que opôs Republicanos – os partidários do governo legítimo – e Nacionalistas – os revoltosos. Hitler e Estaline envolvem-se na guerra: o primeiro envia a força aérea para apoiar os Nacionalistas e o segundo envia conselheiros militares para apoiar os Republicanos. Em 1937 a Legião Condor bombardeia a vila basca de Guernica. Sem defesas militares, os civis de Guernica são massacrados sob as explosões das bombas e as rajadas das metralhadoras. No fim do ataque contam-se milhares de mortos e feridos.
«Sendo o único ser imune à destruição, alguns autores afirmam que o touro representa o Fascismo, enquanto outros, pelo contrário, consideram tratar-se da reação a Franco. Como Picasso gostava de touradas e se identificava com a bestialidade deste animal, é mais provável que o touro simbolize a força e a resistência de Espanha. O touro…».
Exilado em Paris, Picasso toma conhecimento do ataque através da rádio e dos jornais. No atelier da rue des Grands-Augustins n.º 7, começa então a compor Guernica para ser exibida no pavilhão da República Espanhola durante a Exposição Mundial de Paris de 1937.
Maria é uma estudante ucraniana que, através do Programa Erasmus, está em Madrid há uma semana para estudar espanhol. Longe da família e dos amigos, sente-se perdida. Para iludir a solidão, decidiu nesse dia visitar o Museu Rainha Sofia.
A descoberta de Guernica está, simultaneamente, a fasciná-la, a provocar-lhe sofrimento e deixá-la confusa. Percebia agora que a função da arte era, não apenas revelar a beleza, mas, também, denunciar as tragédias da humanidade. Os fuzilamentos do três de Maio de Goya, A liberdade guiando o povo de Delacroix, Guernica de Picasso. O artista lançava o horror na tela impedindo assim o seu esquecimento; homenageava as vítimas e expunha os seus assassinos. Então…, então por que motivo nunca ninguém pintara o sofrimento do seu povo e denunciara o seu carrasco?
Entre 1932 e 1933, Estaline confiscou a produção agrícola à Ucrânia e impediu os seus habitantes de fugirem do país, provocando a morte a mais de quatro milhões de pessoas. O canibalismo tornou-se para muitos a única forma de sobreviver. Entre 1934 e 1939 Estaline desencadeou a «Grande Purga» na qual matou mais de meio milhão de pessoas. Entre 1930 e 1950 Estaline deportou mais de seis milhões de pessoas para zonas de trabalho forçado. Durante esse período estiveram presos nos Gulags dezoito milhões de pessoas. Metade desses prisioneiros morreu de fome, doenças ou fuzilamentos. Nem Picasso, nem nenhum outro artista europeu denunciou tais crimes através da arte.
No horizonte trava-se uma batalha entre o azul e o laranja. Atacado pelas costas, o primeiro sucumbe ante o segundo; em poucos minutos, a luz laranja devora a azul, enrubescendo de seguida. A quinta da família Petrov recebe os primeiros raios do sol de Setembro. A terra tinha sido comprada por Olek Petrov no século dezanove e há mais de um século que os seus descendentes a exploravam. A fertilidade do solo e o trabalho intenso tinham permitido a uma família pobre prosperar. Cada nova geração aumentava a produção agrícola e a qualidade de vida dos seus filhos. A quinta pertencia agora a Micha Petrov, o seu bisneto, e à sua mulher Nadia. A colheita de milho e de trigo desse ano fora abundante.
Nadia Petrova está a preparar o pequeno-almoço para o marido e os três filhos, Luda, Magda e Adam, o bebé. A cozinha cheira a pão de alho, queijo e ovos fritos. De repente, os pássaros calam-se e Vlad, o pastor alemão, desata a ladrar. Àquela hora era habitual o animal ladrar, mas desta vez há algo estranho nos seus latidos. Vlad não está a responder a outros cães ou a ameaçar algum animal. Vlad está assustado. E os pássaros deixam de converter a luz em canto para esvoaçar em debandada. Os mensageiros do amanhecer parecem não querer que o dia nasça.
Micha levanta-se da mesa e vai ver o que se passa.
A princípio não vê nada, mas ouve. Ouve, ao longe, um ruído mecânico. Como animais rugindo ao longe, os camiões anunciam a sua chegada. Quando o primeiro clarão de luz o obriga a fechar os seus olhos azuis, a coluna de seis camiões aparece ao fundo da estrada de terra. Micha só os consegue ver quando eles já se estão a alinhar diante da sua quinta. De repente, os motores calam-se e só se ouve Vlad a rosnar. Quarenta soldados do Exército Vermelho saltam dos camiões e apontam-lhe armas. Do meio deles, surge um oficial soviético. É um homem de meia-idade com um bigode grisalho que veste um uniforme cinzento com duas condecorações ao peito.
Micha e Nádia tinham ouvido rumores de que o Exército Vermelho se preparava para confiscar os alimentos aos ucranianos, mas, tal como os outros camponeses, não quiseram acreditar. A maioria dos camponeses tinha sido obrigada integrar-se em cooperativas agrícolas, muitos tinham sido deportados, mas – pensavam – a repressão ficaria por aí. Por que haveria Estaline de os querer matar à fome? Nem os czares haviam cometido tamanha barbaridade.
O oficial chama Micha e mostra-lhe um papel timbrado. Micha arranca-lhe o papel das mãos, rasga-o e começa a gritar. Não tinham o direito de roubarem o sustento da sua família. Ladrões, ladrões. Um soldado dá-lhe uma coronhada na cabeça e ele tomba desmaiado no solo. O oficial dá uma ordem e os soldados avançam pela quinta. Nadia aperta Adam contra o peito e diz às filhas para se esconderem debaixo das camas.
O sol brilha no horizonte.
Uma hora depois, os soldados vão-se embora. Levaram os cereais e os frutos secos, levaram o boi e a vaca, levaram os três porcos e as dez galinhas. Levaram tudo. Antes de partirem, violaram Nadia, agrediram os filhos e incendiaram a casa.
Maria recorda-se da história que ouvira à sua avó Luda, contada uma única vez durante uma noite de Natal, para toda a família. Tinha sete anos na altura e, durante algum tempo, não teve a certeza se aquela horrível história seria mesmo verdade ou faria parte das lendas que contavam às crianças. Só mais tarde, no liceu, e depois com a internet, compreendeu que as fomes de Holodomor tinham realmente acontecido. Entre dois a dez milhões de ucranianos morreram à fome por decisão de Estaline. Só nunca ficou a saber que, duas semanas depois de os soldados terem saqueado os alimentos da sua quinta, quando os seus familiares já se alimentavam de raízes, insetos e ratos, quando as barrigas começaram a inchar e as gengivas a sangrar, quando um vizinho que lhes tentara roubar os poucos cereais que tinham escapado ao saque fora morto com uma forquilha pelo bisavô Micha, este aproximou-se de Vlad, que se tornara num lobo que desaparecia durante dias para caçar animais na floresta, ajoelhou-se, abraçou-o como se despedisse de um filho e, depois, colocou-lhe uma corda à volta do pescoço e levou-o para trás do celeiro.
Nunca soube, mas imaginou horrores semelhantes.
Em 1958, Picasso cria um desenho a carvão de Estaline para a revista Les Lettres Françaises, a convite de Louis Aragon. Picasso foi criticado, não por ter desenhado um genocida, mas sim por não ter representado dignamente o Pai dos Povos, Estaline. O Partido Comunista Francês e vários intelectuais europeus consideram que o desenho era insultuoso e Aragon foi forçado a pedir desculpa. Em 1962 a ofensa deve ter sido esquecida, pois Picasso recebeu o Prémio Lenine da Paz.
Só a partir de 1989, uma nova geração de artistas ucranianos venceu o medo dos seus antecessores na recriação das fomes de Holodomor.
A Rússia de Vladimir Putin continua a negar que Holodomor tinha sido um genocídio.
Em 2019, o Parlamento Europeu aprova uma moção que equipara, como crimes contra a humanidade, o Nazismo e o Comunismo.
Maria Petrova caminha pelas ruas de Madrid sem saber para onde vai. O ar está frio, mas ela transpira. As roupas das pessoas parecem-lhe demasiado coloridas, os rostos das mulheres demasiado pintados, a velocidade dos carros excessiva. De repente, ouve um cão ladrar e estremece. Olha e vê um pastor alemão, preto e amarelo, avançar na sua direção. É Vlad, o animal devorado pela sua família que regressou para se vingar. Assustada, atravessa a rua sem olhar para os carros. Entra no Jardim do Prado e senta-se num banco. Respira fundo. Tenta rir-se da sua tolice, mas não consegue. Está, até, prestes a chorar. Há pouco tinha ouvido as sirenes de aviso, agora começa o verdadeiro bombardeamento. O horror explode dentro da sua cabeça. Os seus antepassados vagueiam pela quinta como fantasmas: a bisavó Nadia com o corpo de Adam nos braços, o bisavô Micha tombado no solo com os braços abertos, a avô Luda arrastando uma perna partida e a tia avô Magda a tentar fugir por uma janela em chamas. Depois, como os mortos-vivos de The Walking Dead, um grupo de camponeses esfomeados invade a quinta para os devorar. Tudo se mistura numa projeção caótica de violência, sofrimento e degradação.
O céu de Madrid está laranja. O canto dos pássaros anuncia o crepúsculo. Das árvores solta-se um odor fresco. Os alunos que estavam no museu correm como uma manada de cavalos pelo jardim. Ao lado de Maria, um pintor de rua dá as pinceladas finais numa réplica do touro de Guernica.