O terror das armas de fogo é problema que não se resume aos EUA

Lucas, imigrante brasileiro de 25 anos, está em Portugal há 12 e não se imagina a regressar. Sofia Reino viveu nos EUA e as filhas falavam-lhe dos tiroteios nas escolas com naturalidade. Qual será o panorama em Portugal?

As mortes relacionadas com as armas de fogo são, infelizmente, mais comuns do que imaginamos. No ano de 2019, mais de 250 mil pessoas morreram em todo o mundo devido às mesmas, sendo quase 71% destes óbitos homicídios, cerca de 21% suicídios e 8% acidentes não intencionais.

Estes dados foram aglomerados e analisados pela plataforma World Population Review, um site que tenta transformar informações demográficas complexas em artigos, tabelas, etc. de fácil compreensão para a generalidade da população. Neste caso, os números dizem respeito ao relatório Global Burden of Disease e à investigação “Global Mortality From Firearms, 1990-2016” publicada no Journal of the American Medical Association (JAMA).

Há três anos, quase nove em cada 10 pessoas mortas por violência armada em 2019 eram homens. O maior número de homicídios ocorreu entre pessoas de 20 a 24 anos, enquanto o maior número de suicídios este meio disse respeito a pessoas com idades entre os 55 e os 59 anos. Mais exatamente, das 250.227 mortes por armas de fogo estimadas em todo o mundo, 65,9% ocorreram em apenas seis países: Brasil, Estados Unidos da América (EUA), Venezuela, México, Índia e Colômbia.

No entanto, se tivermos em consideração os países com mais óbitos provocados por armas de fogo por 100 mil habitantes, El Salvador surge em primeiro lugar com 36.78 e, depois da Venezuela, da Guatemala, da Colômbia e do Brasil, aparecem as Bahamas (21.52).

“Estes números não me surpreendem. Já saí do Brasil há 12 anos e, quase todos os dias, os meus familiares e amigos que ainda estão lá contam-me episódios de violência que envolvem armas de fogo. Aqui, sinto-me seguro, algo que nem sequer sabia o que significava quando vivia nos subúrbios de São Paulo”, começa por explicar o estudante universitário Lucas, de 25 anos, que prefere não revelar o apelido para se proteger e, acima de tudo, não pôr a família em risco.

“Em Portugal, é tudo muito mais calmo. É claro que não estamos seguros a 100%, mas será que existe algum país onde isso aconteça? Quando comparo Portugal com o Brasil… nem dá para comparar”, confessa o jovem, indicando que, no ano passado, o número de armas registadas na posse dos cidadãos brasileiros quase duplicou, se compararmos o valor com aquele que fora registado em 2020.

Esta foi uma das conclusões principais da mais recente edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado a 15 de julho de 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). De acordo com dados do Sistema Nacional de Armas (SINARM), sistema da Polícia Federal que controla a posse, transferência e comercialização de armas de fogo, houve 186.071 novos registos em 2020, um aumento de 97,1% em doze meses. Por outro lado, mais do que duplicou igualmente (aumento de 108%) a autorização de importação de armas de fogo de cano longo, categoria que inclui, por exemplo, carabinas e espingardas.

“Mas isto é novidade para quem?”, pergunta. “Basta acompanharmos minimamente a política brasileira para percebermos que vai tudo de mal a pior. Ainda no mês passado, o Presidente Bolsonaro disse que quer dar armas aos ‘cidadãos de bem’. Ele insiste constantemente no reforço do armamento dos civis. Portanto, se o Brasil está como está… Devemos-lhe isso”, critica, recordando as declarações do dirigente.

“O Brasil é um país cristão, nós somos contra o aborto, nós somos contra a ideologia de género, nós defendemos a família, nós defendemos a propriedade privada, nós queremos armas de fogo para o cidadão de bem“, afirmou Bolsonaro, numa intervenção no estado de Goiás, citado pelo portal Uol Notícias.

“Todos vocês, cidadãos de bem, sabem que a arma, em especial em locais mais distantes, é a garantia da vida de vocês e para todos nós aqui. Não se esqueçam que povo armado jamais será escravizado”, disse o Presidente a 20 de abril, sendo que, no dia anterior, a imprensa brasileira havia denunciado que o ex-secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciúncula, tinha proposto a utilização de verbas destinadas ao apoio cultural para financiar conteúdos pró-armas.

“Quase todos os anos, vou de férias ao Brasil e volto sempre com a sensação de que já não sei viver lá. Estou habituado a Lisboa e quando estou em São Paulo parece que mudei de planeta. Já não sei o que é sair de casa e esconder o telemóvel, a carteira, olhar para todo o lado, ver se vem alguém atrás de mim quando estou a caminho da paragem de autocarros ou de outro sítio qualquer… É estranho e assustador, ao mesmo tempo”, admite Lucas.

O paradigmático caso dos EUA Lucas vai ao encontro da perspetiva de Sofia Reino, filha de diplomatas e residente nos EUA durante muitos anos. Primeiro, com os pais, pois o último posto do pai foi na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, e, posteriormente, com o agora ex-marido e as duas filhas.

A proprietária da quinta biológica e comunitária TerrAzoia é mãe de Rita, de 24 anos e de Cláudia, de 13, tendo vivido nos mais variados estados norte-americanos com a família, como o Tennessee, o Iowa ou a Carolina do Sul. “Esta foi uma das grandes razões pelas quais voltei a Portugal. Quando a minha mais nova veio da escola com um ar totalmente natural a dizer que tiveram um gunman drill” – exercício em que homens mascarados de rifles de em riste invadem as salas de aula e simulam ataques com armas – “perguntei-lhe: ‘Como assim?’”.

“Sabes, mãe, se um homem entra na escola e começa a disparar contra nós”, terá respondido Cláudia. “Mas com uma voz como se fosse algo normal. Fiquei horrorizada. E as vezes que lia no Twitter ou SMS da minha mais velha a dizer que estavam ‘confinados’ porque um tipo tinha tentado ou mesmo entrado no liceu dela… Aqui só se ouve os piores casos, mas cenas destas aconteciam quatro ou cinco vezes por ano numa escola ou liceu”, salienta. Apesar de toda a controvérsia que envolve a lei das armas, nos EUA, o Presidente Biden fez um discurso sentido depois de ter tido conhecimento do massacre em Ulvade, que ocorreu na terça-feira.

Recuando até ao tempo em que exerceu o cargo de senador, Biden explicou que quando foi aprovada uma lei que proibia as armas de assalto, como as semiautomáticas, “os tiroteios em massa diminuíram”. “Quando a lei expirou, os massacres triplicaram”, recordou. “Por Deus, porque precisamos de armas de assalto exceto para matar alguém?”, perguntou, denunciando o lóbi das armas.

“Sabemos que há tragédias, mas precisamos de lidar com o facto de estas armas terem de ser banidas”, referiu, avançando que os “fabricantes de armas trabalham para lucrar ainda mais e tem sendo assim nos últimos 20 anos. Nós precisamos de nos erguer contra esse setor”, sublinhou, não sendo possível esquecer a Associação Nacional de Armas (NRA, na sigla original), que foi criada com o objetivo primordial de “promover e encorajar as armas numa base científica”.

Todavia, atualmente, depois de ter criado o Instituto para a Ação Legal e, posteriormente, o Comité de Ação Política oficialmente diz gastar três milhões de dólares por ano (aproximadamente 2,8 milhões de euros) para fazer lóbi junto de políticos, embora na realidade se estime que gaste grande parte dos 250 milhões de dólares (cerca de 233 milhões de euros) que correspondem ao orçamento anual em campanhas de congressistas.

De acordo com o Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), da Fundação Bill & Melinda Gates, as taxas de homicídio por arma de fogo nos EUA são 13 vezes mais altas do que em França e 22 vezes a média da União Europeia como um todo. Os EUA têm 23 vezes mais armas de fogo do que a Austrália, por exemplo.

“Dentro dos EUA, a violência armada varia muito. As taxas de homicídio por arma de fogo variam de um máximo de 17 por 100.000 em Washington, D.C. a um mínimo de 0,91 por 100.000 em New Hampshire. A taxa de Washington, D.C. é semelhante à das Bahamas e do México. A taxa de New Hampshire é semelhante à do Paquistão. Embora New Hampshire tenha as taxas mais baixas de homicídios por armas de fogo, a sua taxa é quase cinco vezes maior do que a da União Europeia como um todo” – age-adjusted ou ajustadas à idade, isto é, uma técnica utilizada para permitir a comparação estatística de populações quando os perfis etários destas são bastante diferentes -, lê-se no artigo “Sobre a violência armada, os Estados Unidos são uma exceção”, publicado em março de 2021.

 

“Um esforço contínuo no sentido de evitar a dispersão da disponibilidade de armas de fogo”

Se tivermos em conta os últimos dados veiculados pela PSP, existem cada vez menos armas de fogo em Portugal, na medida em que o número de licenças de uso e porte de arma de fogo emitido anualmente pela PSP está a diminuir, passando das 45.133 em 2017, para as 42.412 em 2018, 37.470 em 2019 e para as 7.605 em 2020. “O problema é a forma como a decisão, que é quase sempre da PSP, é tomada. Há algumas cláusulas relativamente amplas e conferem margem e discricionariedade ao decisor. De resto, há os critérios da caça, desportivo, militares e ex-militares – temos alguns, nomeadamente, antigos combatentes, e pode haver alguns que não devolveram as armas –, mas a questão é mais na natureza da aplicação”, reflete Gabriel Mateus de Albuquerque, especialista em Direito Penal.

“É mais difícil para quem não está no terreno. Como é que a PSP trata disto? Do conhecimento que tenho do regime, olhando para tudo, as categorias das licenças não levantam grandes questões e depois há considerações mais abrangentes. Na categoria B, a prova de que carecem do porte de arma… É o tipo de referência legislativa que depende muito daquilo que é o entendimento desta carência”, observa o autor da obra “Ao Leme de Portugal: Governos e governantes de 1974 a 2019”.

“Tanto pode ser mais restritivo por parte do diretor nacional da PSP como o oposto, sendo uma espécie de forma de tornar a lei mais permeável. Os EUA, a questão do porte de armas… Tem uma dimensão constitucional muito grande e remete à ideia fundacional de que o cidadão, perante um Estado tirânico, poderia ter uma arma para lhe fazer frente. É muito próprio do espírito liberal, há esta razão histórica muito profunda”, acrescenta o jovem, reconhecendo, porém, “que, à data de hoje, esta razão não procede”.

“A disparidade de forças entre o poderio do Estado e o dos cidadãos é absolutamente incomparável. Temos de ter sempre por base este fundamento histórico. Entretanto, a lógica argumentativa foi-se transformando e fala-se nas capacidades de autodefesa e reação, a necessidade de se estar legalmente armado… A tradição tem um peso grande e assenta neste pressuposto, mas vão sucedendo situações totalmente desastrosas”, garante. “Quando se entra na dinâmica política da questão, é muito fácil que os argumentos descambem para uma vertente menos racional e técnica, mas a decisão deve ser fundamentada em critérios técnicos. Temos de pensar na necessidade do desarmamento face à diminuição dos crimes excecionalmente violentos”.

“Por parte do Estado português e, em especial, do exercício das competências atribuídas em exclusivo à PSP, exercidas por intermédio do Departamento de Armas e Explosivos, há um esforço contínuo no sentido de evitar a dispersão da disponibilidade de armas de fogo e, por outro lado, há rígidas previsões legais que permitem a sua apreensão cautelar a pessoas que, ainda que as possuam legalmente, demonstrem um comportamento cívico indiciador de alguns riscos”, declara a PSP, em declarações ao i, frisando a apreensão cautelar pela PSP no contexto de investigação criminal de crimes de violência doméstica, com 1550 situações em 2019 e 1595 em 2020.

 “Para além disso, em Portugal, desde 31 de julho de 2021 que o titular de qualquer tipo de licença de uso e porte de arma, mesmo os cidadãos isentos ou dispensados dessa licença, logo a partir da aquisição ou detenção da primeira arma de fogo, têm a obrigação legal de possuir cofre ou armário de segurança não portátil para guarda da(s) arma(s)”, diz a força de segurança, esclarecendo que “o cofre ou armário de segurança terão de ser não portáteis, com nível de segurança mínima de acordo com a norma europeia EN 14450 – S1 ou nível de segurança equivalente, a comprovar mediante a exibição da fatura-recibo ou documento equivalente”.

“Ou, na sua inexistência, por declaração sob compromisso de honra do proprietário onde constem fotografias do cofre e detalhe da sua instalação. Desde a entrada em vigor desta obrigação, em setembro de 2019, até julho de 2021 a Polícia de segurança Pública, por intermédio do Departamento de Armas e Explosivos, recebeu o comprovativo de instalação de 80 225 cofres e armários de segurança”, aponta a autoridade que tem “promovido ao longo dos anos diversas campanhas de entrega voluntária de armas de fogo” que conduziu à destruição de cerca de 205 000 armas de fogo entre 2014 e 2020. “A campanha mais recente, decorrida entre fevereiro e junho de 2021, permitiu a recolha de 2216 armas de fogo, a sua maioria armas de caça da classe D – vulgo espingardas (1498, cerca de 68% do total) – e mais de 8100 munições de vários calibres”.

 Entre 2019 e2021, os Polícias da PSP detiveram 1.273 cidadãos pela posse e/ou tráfico de armas.