Se há aqueles que defendem a premissa do poeta francês André Suarès, que nos diz que “a arte é o lugar da liberdade perfeita”, que nos aproxima; outros partilham da ideia do escritor irlandês Oscar Wilde, acreditando que esta “é a forma mais intensa de individualismo que o mundo conhece”. A verdade é que, desde a pré-história, o ser humano procura manifestar as suas visões de mundo e do sentir através dela, seja com a música, a dança, pintura ou arquitetura e, nos últimos anos, a street art tem sido um grande “canal de expressão”, sendo escolhida, muitas vezes, para comemorar alguma coisa. Grafita-se para homenagear uma figura importante, para eternizar algum momento, para festejar alguma data. Este foi o caso do mais recente mural pintado no centro histórico de Quito, capital do Equador, que tem causado bastante polémica por misturar a figura de três indígenas, com o famoso desenho animado Pikachu. A 16 de maio, para comemorar os duzentos anos de independência do Equador (na batalha de Pichincha onde os espanhóis foram derrotados), um mural pintado pelo artista espanhol Okuda San Miguel – a que deu o nome As Bordadoras do Metaverso (os bordados foram declarados património cultura nacional do Equador) e que foi uma contribuição da embaixada da Espanha para “comemorar” a batalha – representando três senhoras indígenas. O seu estilo é distinguido pela utilização de padrões geométricos coloridos que retratam animais, caveiras, iconografia religiosa e figuras humanas. Por isso, já se esperava que o trabalho chamasse as atenções. Contudo, a escolha do famoso protagonista da série infantil Pokémon para incorporar um dos chapéus da figura central do graffiti, provocou uma grande dualidade de reações. A obra está localizada no bulevar da Plaza 24 de Mayo, no centro histórico e faz parte do projeto CaminArte, promovido pela Prefeitura para recuperar o património urbano através de uma série de grafittis que serão realizados ao longo do ano. Nas redes sociais, vários usuários depressa reagiram com críticas e ridicularizações pela imagem do personagem: “O que um Pikachu está a fazer num mural bicentenário?”, foi a pergunta mais recorrente. Enquanto uns recorreram à sátira com memes, outros falaram duramente contra a administração municipal. “E então o General Sucre disse: ‘Pikachu, eu escolho-te a ti!’”, brincou um usuário do Twitter. “Pikachu, o herói da Pichincha”, acrescentou. “Quando os serviços públicos de alto escalão aprenderem a ouvir as pessoas e o bom senso, não apenas o seu ego, a realidade será outra. Quito não merece tal ofensa”, lamentou outra internauta.
Liberdade artística
Para espanto de muitos, na passada sexta-feira, o próprio artista agradeceu por todos os memes criados: “Obrigado a todos os criativos que geraram memes infinitos e maravilhosos!”, escreveu num post do Instagram acompanhado de alguns gráficos em quadrinhos. Da mesma forma, dirigiu-se aos artesãos equatorianos que foram a sua principal inspiração para o trabalho geométrico e colorido. “Amor infinito pelas minhas bordadeiras da Comuna de Llano Grande que transmitiram tanto amor e inspiração, tanto para mim, como para todo o povo de Quito e do Equador” , agradeceu, descrevendo também as tradições e a sabedoria indígenas como “os fundamentos da evolução humana”. “Viva a cultura indígena, viva o Equador e viva o feedback cultural” , comemorou.
Segundo o jornal El Confidencial, as críticas surgem em grande parte porque “no Equador e na generalidade da América Latina, falar sobre povos indígenas é tão delicado quanto falar sobre a população afro-americana nos EUA”. Nestes 200 anos de independência, “a população indígena continuou a ser a menos beneficiada” e, por isso, recaem interrogações sobre a utilização do desenho animado: a embaixada da Espanha sabia que o Pikachu apareceria como chapéu de uma mulher indígena? Perante a onda de opiniões que questionaram o mural, o Instituto do Património Metropolitano (IMP) emitiu um comunicado onde esclareceu que a obra foi uma doação da embaixada da Espanha no Equador, não utilizando recursos públicos da Prefeitura de Quito. “O mural não representa nem foi inspirado na batalha de Pichincha, é sim uma homenagem criativa às expressões do património imaterial simbolizadas nas bordadeiras tradicionais”, sublinhou. Por sua vez, interrogada pelo jornal espanhol, se o esboço do desenho foi “supervisionado”, a embaixada Espanhola admitiu que não: “Isso seria praticamente censurar o seu trabalho!”, defendeu o representante cultural Pablo Pérez Guerreira. “Encomendámos um trabalho sobre as bordadeiras e foi isso que foi produzido. A arte é transgressora e urbana. Não há avaliação oficial porque não pode haver uma!”, acrescentou. Além disso, Guerreira “legitima” a criação do artista argumentando que “os protagonistas estão satisfeitos com o produto final”: “Convido-vos a perguntarem a opinião das próprias bordadeiras! Ontem choraram de emoção várias vezes porque disseram que o seu trabalho é totalmente invisível e o Pikachu representa uma janela para o mundo. É como uma janela para a modernidade!”, contou.
Já Nayra Chalán, vice-presidente da Confederação de Povos de Nacionalidade Kichwa do Equador, revelou que no imaginário do grupo “não entra a batalha da Pichincha, nem a independência”. Ou seja, o movimento indígena “não criticou o mural porque basicamente se sente excluído dessa celebração do bicentenário”. “Esse facto não significa que o movimento seja insensível a esse trabalho. No mural há realmente elementos que denigrem as mulheres indígenas”, defendeu, explicando que, para si, o trabalho exalta uma “hegemonia cultural”. Relativamente à reação positiva das bordadeiras de que fala Guerreira, Nayra mostrou ao El Confidencial o outro lado da moeda: “É a necessidade de colocar os seus bordados num espaço de reivindicações culturais, mas também económicas para a sua própria sobrevivência. Parece-me que esta é uma saída desesperada que as companheiras procuram! Não as questiono, mas vejo que esse desespero acolhe qualquer forma que venha estrategicamente pensada de outros lados”, exaltou. De acordo com a mesma publicação, para o mundo indígena, a pop art “é mais uma extensão de uma cultura capitalista com raízes na colónia e cuja expressão máxima é uma cena artística pós-moderna que procura ser provocativa sem criticar a realidade existente”. Para Nayra, “a obra de Okuda em Quito deixa uma batalha cultural ainda a ser travada nas nossas sociedades”: sob o pretexto de evitar uma “cultura do cancelamento”, a embaixada da Espanha no Equador e o Município de Quito têm o direito de dar a um artista total liberdade para realizar uma intervenção em um espaço público?
Além do IMP, o próprio município de Quito fez questão de emitir um comunicado em que reforça que Okuda San Miguel, é hoje “um dos maiores expoentes não só da street art espanhola como do planeta e que o seu trabalho adorna as ruas da Espanha, Europa, e os cinco continentes”. Interrogada também sobre se é coincidência ou não que o polémico mural venha das mãos da embaixada da Espanha, a liderança indígena respondeu que “talvez ainda persista a sensação de que ainda somos uma colónia de Espanha”.