Dia da Espiga

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Como te sentes depois de teres sido condecorada uma vez mais?                                                                                    Desta vez a condecoração veio por parte do Presidente da Câmara Municipal de Mafra. Município que escolheste para viver grande parte do ano, e onde fica a Ericeira, terra que chamas de pátria.

Mafra, tal como acontece noutros municípios, comemora o seu feriado municipal na quinta-feira da Ascensão, que muitos conhecem por quinta-feira da Espiga.

Se não estou em erro, esse dia foi feriado nacional até 1952, certo?

Durante a minha infância, também vivi num município que tinha este dia como feriado municipal.

O dia começava com um passeio matinal pelo campo, onde colhíamos espigas de vários cereais, flores campestres e raminhos de oliveira para formar um ramo. Esses campos, onde andava com os meus avós, hoje estão cheios de casas.

Segundo a tradição, que aprendi com eles, o ramo deve ser colocado por detrás da porta de entrada, e só deve ser substituído por um novo no dia da espiga do ano seguinte.

No passado, o Dia da Espiga era também o “Dia da Hora” e considerado “o dia mais santo do ano”, um dia em que não se devia trabalhar. Era chamado o dia da hora porque havia uma hora, o meio-dia, em que tudo parava, “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam”. Era nessa hora que se colhiam as plantas para fazer o ramo da espiga e também se colhiam as ervas medicinais. Em dias de trovoadas queimava-se um pouco da espiga no fogo da lareira para afastar os raios.

Estas lendas, que os meus avós me contavam, já lhes tinham sido contadas pelos avós deles.

Espero que em muito locais os avós continuem a colher ramos de espigas com os netos.

Em Lisboa, o mais habitual é vermos pessoas a vender estes ramos, normalmente à porta das igrejas, a quem trabalha ou vive na capital.

Já poucos devem saber o significado deste símbolo de prosperidade e sorte.

Bom fim de semana.

Bjs

 

Querido neto,

Nunca me lembro de não ter tido um ramo de espiga cá em casa. Mas tens razão. A espiga de trigo que ainda hoje conservo aqui na sala não tem rigorosamente nada a ver com o Dia da Espiga. Mas garanto-te que é a espiga mais linda do mundo.

Estávamos em Agosto de 1988. Nesse mês havia sempre um grande Salão do Livro na cidade de São Paulo, no Brasil, a que eu nunca faltava.

Convém recordar que se estava ainda num tempo pré-histórico, sem net nem telemóveis.

Uma noite eu e vários amigos tínhamos saído para ir jantar e abancámos numa cantina, das muitas que havia em São Paulo. A televisão estava aberta.

E de repente fez-se um terrível silêncio. O programa da televisão tinha sido interrompido para um jornalista anunciar que Lisboa estava a arder.

Ninguém sabia mais nada, o dono da cantina telefonava para colegas e ninguém sabia mais do que isso.

Eu levantei-me da mesa, disse: «Fiquem vocês, se quiserem, eu vou já tomar um táxi, apanho a minha mala no hotel e sigo logo para o aeroporto, para apanhar o primeiro avião que levantar voo».

Saí a correr da cantina para apanhar um táxi.

Mas táxis, nem vê-los.

Até que, a uma dada altura, eu vejo um negro, enorme, muito sujo, perdido de bêbedo, a avançar para mim do fundo da rua vazia. 

Pensei “pronto, vai ser o último dia da minha vida”, mas já não podia fazer nada, o negro continuava a avançar na minha direção, e agora chamava por mim.

«Moça!».

E logo os braços dele a agarrarem-me com força.

Reparo que chora baba e que tem uma espiga de trigo na mão. De repente entrega-me a espiga.

«Ó moça, tome, isto é para você, porque eu estou muito triste porque Lisboa está a arder…».

E foi agarrado a mim até ao meu hotel, sempre a chorar, e a repetir «Lisboa está a arder»…

Levei a espiga na mão para o avião, desembarquei em Lisboa com ela na mão – e há 34 anos que ela ali está, a olhar para mim.

Aqui tens a história da importância da espiga na minha vida.

Bjs