A crise alimentar em Cabo Delgado, após anos sem que a população conseguisse cultivar as suas terras, e agravada pela guerra na Ucrânia, tem levado dezenas de insurgentes esfomeados a saírem do mato e render-se. Outros focam-se em atacar machambas – quintas com agricultura de subsistência – e pequenas aldeias, roubando comida em vez de lançarem ataques contra militares ou as suas habituais campanhas de terror e decapitação. Muitos jiadistas misturaram-se entre as comunidades locais. E alguns têm-se escondido, sobrevivendo do que conseguem encontrar, mantendo-se longe das povoações onde cresceram, dos militares e dos vizinhos que atormentaram, receosos de enfrentar a vingança pelos seus crimes.
Contudo, «esta escassez causou uma fome generalizada», alerta João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural (OMR), ao Nascer do SOL. A crise alimentar «é para todos, não é só para os insurgentes, afeta civis e os próprios militares, que têm problemas de logística. O custo de uma operação destas, com centenas ou milhares de soldados, são enormes. Tem de haver uma máquina logística grande e não há capacidade para isso». A notícia da onda de rendições, com quase meia centena de insurgentes – sobretudo jovens e pouco experientes – a depor as armas de uma vez, semana passada, avançou a VoA, pode parecer encorajadora à primeira vista. Mas «todos passam fome», frisa o sociólogo.
«A situação é tenebrosa», concorda Omardine Omar, repórter da Carta de Moçambique, que tem feito extenso trabalho quanto à guerra em Cabo Delgado.
«Até tem feito aparecer grupos de malfeitores, a partir de Pemba. Há muita gente que teve de fugir da sua terra, que parou de produzir. E há sistemas de corrupção que não permitem que os apoios cheguem aos deslocados, dirigentes chegam a exigir sexo a deslocadas, a troco dessa comida», lamenta Omar, cujo trabalho jornalístico já o fez cair nas más graças de Maputo. Há dois anos, um tribunal moçambicano chegou a condená-lo por desobediência civil, quando investigava relatos de extorsão policial a vendedores locais, sendo a sua pena de 15 dias de prisão reduzida para uma multa equivalente a 185 euros, sob pressão de organizações internacionais.
A crise alimentar em Cabo Delgado, muito dependente de ajuda humanitária, tem vindo a agravar-se e «há uma influência direta do que está a acontecer na Ucrânia», considera Omar. «Em Moçambique, o preço de tudo o que são produtos alimentares explodiu. Um garrafão de cinco litros de óleo que nós comprávamos há um mês por 500 meticais [7,3 euros] ou 800 meticais [11,7 euros], dependendo da qualidade, agora custam no mínimo uns mil meticais [14,6 euros]», aponta, referindo-se a uma das principais exportações da Ucrânia, conhecida pelos seus extensos campos de girassóis.
«Se isso se faz sentir na capital, onde há facilidade de acesso, onde circulam os magnatas do país e estão sediadas grandes empresas, some-se o custo do transporte desses produtos para Cabo Delgado, que fica quase a três mil quilómetros de distância. A situação é lastimosa», descreve o jornalista.
«E o Programa Alimentar Mundial tem feito constantes pedidos de apoio para a situação em Cabo Delgado, mas com esta guerra na Ucrânia vai ser difícil. Até porque Moçambique tem-se batido com calamidades naturais», remata, falando dos ciclones e cheias que devastam com mais frequência o país nos últimos anos, sobretudo o centro. O que «criou uma avalanche de populações que perderam tudo e também precisam de ajuda».
Combater por comida
Entre os testemunhos de vítimas escravizadas pelos insurgentes de Cabo Delgado, e que conseguiram escapar-lhes nas últimas semanas, ouvem-se histórias de fome nas bases deste grupo que jurou lealdade ao Estado Islâmico. Por vezes apenas havia uma refeição por dia. E só comiam «o que iam conseguindo roubar ali no mato. Estamos a falar de cocos, papas, mandioca que vão apanhando, frutos silvestres, raízes, tubérculos, abóbora, o que há», relata João Feijó.
O grande impacto da invasão da Ucrânia em Cabo Delgado, mais que a subida do preço do trigo e óleo, talvez seja a maior dificuldade de organizações como o Programa Alimentar Mundial em providenciar ajuda humanitária.
Ainda que o que chegava à província fosse sobretudo milho, arroz e feijão, organizações internacionais viram os seus orçamentos esticados por gastos noutros teatros, enquanto cada vez mais doadores direcionam os seus fundos para a Ucrânia. Os insurgentes acabam afetados por dependerem de roubos de ajuda humanitária – «em Mocimboa da Praia, em Macomia ou Palma, não é por acaso que ataques deles ocorriam em períodos em que sabiam que tinha chegado novos stocks de ajuda alimentar», diz o sociólogo – e dos bens obtidos pelas suas redes clandestinas em cidades como Pemba.
«O que está a aumentar é o preço do trigo, que afeta a população urbana. Mas a população rural não tem o pão como a principal fonte da dieta, alimentam-se sobretudo de milho ou mandioca», explica Feijó. Tradicionalmente, em Cabo Delgado, produzia-se arroz nas terras baixas, milho no planalto, e a costa tem imenso peixe e camarão, dado que o arquipélago das Quirimbas é conhecido pelos seus corais fabulosos, cheios de alimento para a fauna marinha.
«Havia muitas trocas comerciais entre a costa e o interior, mas a guerra quebrou essas relações económicas», nota o sociólogo. «E simplesmente não se produz. Quase só se pesca nas ilhas, na costa andam por lá alguns corajosos, ou que simplesmente não têm alternativa. A população concentrou-se quase toda no sul, onde falta terrenos agrícolas para tanta gente».
No entanto, no que toca à fome que assola os jiadistas de Cabo Delgado, as operações das forças moçambicanas e dos seus parceiros internacionais também têm tido um papel crucial, nota Omardine Omar. «Uma das grandes vitórias do contingente militar é terem cortado, até certo ponto, a base logística dos insurgentes», explica. Militares têm bloqueado os fornecimentos vindos da vizinha província de Nampula ou de Pemba, a sul, montando cada vez mais postos de controlo. A norte, no rio Rovuma, que separa Moçambique da Tanzânia, forças destacadas pela Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla inglesa), apostam em impedir que os insurgentes possam saltar de um país para o outro a seu bel-prazer, como costumavam fazer.
«Os ruandeses estão em Palma e Mocimboa da Praia», enumera o jornalista, mencionando algumas das localidades mais duramente disputadas com os jiadistas. Não espanta que tenham sido colocadas nas mãos dos militares do Ruanda, conhecidos como dos mais capazes da África Subsaariana, mas também pela sua brutalidade, habituados a combates de guerrilha nas florestas da República Democrática do Congo. «Os sul-africanos estão mais para os lados de Macomia», continua Omar. «Os dos Botsuana estão em Mueda e os da Tanzânia no corredor entre Mueda e o Rovuma, mas também em Muidumbe». Olhando para o mapa, quase parece que está a descrever um cerco ao distrito de Nangade, perto da fronteira, uns dos pontos com mais confrontos armados a semana passada, registou o Mozambique Conflict Observatory.
Já Feijó ressalva que, apesar de haver deserções devido à fome, nada indica que estejam a afetar o núcleo duro dos jiadistas. «Estes grupos têm uma hierarquia estilo militar. Têm os seus altos comandantes e oficiais, chamemos-lhes assim, que são os indivíduos mais internacionalizados, sejam moçambicanos ou estrangeiros, sobretudo tanzanianos. Muitos estiveram fora a participar neste tipo de lutas jiadistas no Congo ou na Tanzânia, são mais convictos e radicalizados. E esses não se rendem», salienta o sociólogo.
«Quem se rende, claro, são os de baixa patente. Aqueles que se juntaram não tanto por questões ideológicas, mas porque foram obrigados, quando foram raptados, ou se juntaram ao grupo por dinheiro. Esses estão sempre a avaliar as vantagens de estar ali. E agora não há», considera. «Até porque, lá dentro, os recursos, pilhagens e alimentação são distribuídos em proporção direta com o nível hierárquico».
Ou seja, apesar de se começar a ouvir alguns dirigentes moçambicanos falarem do fim da insurgência, talvez seja cedo demais para isso. «Numa guerra de guerrilha, o número de efetivos vai aumentando e diminuindo consoante a logística», lembra Feijó. «Foi como aconteceu com a Frelimo durante a luta de libertação nacional. Os efetivos da Frelimo aumentavam ou diminuíam em função da pressão do Estado colonial. Muitos espalhavam-se e infiltravam-se entre a população».
Aliás, na perspetiva deste sociólogo, provavelmente o grosso dos insurgentes esfomeados não se renderá, preferindo tentar esconder-se ou misturar-se entre a população, até à próxima vez que pegar em armas. «Têm muito medo de serem torturados e mortos caso se rendam. Conhecem as consequências, porque sabem muito bem o que fizeram», explica Feijó. Frisando que o grosso dos insurgentes tem optado simplesmente por se misturar com a população. «Há muitos relatos de pessoas que fugiram dos jiadistas, foram para Pemba, Montepuez ou Nampula e encontraram nestas cidades indivíduos que reconheceram, que tinham estado lá nos campos, mas que a dada altura acharam que era melhor fugir».
Quanto aos que ficarem no mato, não será fácil desalojá-los, numa província com uma geografia que é o sonho de qualquer guerrilheiro. «Se pesquisar na internet, encontra bastantes blogues e páginas de antigos combatentes do exército colonial, que conhecem muito bem o terreno», sugere Feijó. «Falam muito da serra do Mapé, na Macomia, onde o exército colonial sofreu muitas baixas e dificuldades semelhantes às que as tropas atuais estão a enfrentar. É uma zona de floresta muito densa, com relevo complicado, com ravinas, cursos de água e esconderijos, a infantaria ali cai em muitas emboscadas. E os insurgentes conhecem o terreno, os nossos militares não. Porque muitas vezes não, porque não são dali, nem os ruandeses».