por Fernando Maymone Martins
Médico
A causa próxima é a fuga de informação que trouxe a público um documento interno do Supremo Tribunal dos EUA que aponta no sentido da reversão da sua própria sentença de 1973 relativa ao caso Roe v. Wade. Uma fuga inédita na história deste tribunal.
Vale a pena situar a questão. Mas é também inevitável pensar no problema de fundo.
No processo Roe v. Wade, o Supremo Tribunal americano decidiu que o acesso ao aborto não devia ser uma competência dos Estados individuais, declarando haver fundamento na Constituição para que a liberdade de acesso devesse prevalecer por igual em todos os Estados.
Foi uma decisão que gerou e gera ainda enorme controvérsia. O aborto não é mencionado na Constituição dos EUA. O veredicto, de que foi relator o Juiz Gary Wade, recorreu a uma argumentação elaborada e retorcida, associando a liberdade de acesso ao aborto ao direito à privacidade. A decisão respeitava à questão suscitada por uma grávida (“Jane Roe”) que pretendia abortar alegando ter sido vítima de violação. Embora essas alegações se viessem a revelar falsas (um assunto pouco referido nos media), a decisão manteve-se, ganhou força de lei e está em vigor vai para cinquenta anos. Teve influência decisiva na divulgação do aborto e na disseminação da ideia de que o aborto é um direito, secundarizando drástica e dramaticamente o valor da vida da criança, sempre inocente em qualquer caso.
Em época mais recente, o Estado do Mississípi entendeu criar legislação própria, proibindo o aborto a partir das quinze semanas de gestação. Esta circunstância desencadeou o processo de revisão, pelo Supremo Tribunal, da decisão de 1973. A possibilidade da sua reversão, não proibiria o aborto, mas devolveria aos Estados a capacidade de decisão na matéria.
A questão não está encerrada, mas a fuga de informação reacendeu as maiores polémicas, com grande mobilização dos movimentos abortistas e declarações inflamadas de responsáveis políticos, incluindo o Presidente Biden, em completo e escandaloso atropelo do princípio da separação dos poderes.
A prática do aborto, entretanto, banalizou-se, dentro e fora dos EUA, com fortes apoios dentro de grandes instituições, incluindo a própria ONU extravasando, evidentemente, da sua missão. O aborto é promovido e praticado em larga escala. Na China, milhões de mulheres grávidas de crianças do sexo feminino, a quem só era permitido ter um filho, foram coagidas a abortar. O Presidente Macron pretende proclamar o aborto – ou seja, a possibilidade de matar no útero uma criança a caminho de nascer – como um “direito fundamental” na UE. Pretende, também, como, aliás, uma “recomendação” do próprio Parlamento Europeu, criar limitações ao direito à objecção de consciência. Não estará longe o dia em que se exija aos médicos candidatos a obstetras experiência na eliminação de crianças por meio aborto.
O alargamento dos prazos legais para abortar atingiu as raias do infanticídio mais odioso, sendo conhecida a prática designada por “late bith abortion” em gravidezes de termo, e é público o uso de partes de embriões humanos para fins alegadamente científicos.
A evolução da ciência não cessa de demonstrar, cada vez com mais argumentos, a individualidade e a identidade de cada feto como ser humano. As ecografias entraram na vida quotidiana. Se no início da gravidez o feto tem menos visibilidade e, até por isso, a sua perda é menos chocante, com o avançar do seu desenvolvimento, a evidência impõe-se de forma irrecusável e a violência da IVG torna-se assustadoramente gritante.
Não por acaso, em Portugal, a regulamentação da IVG do governo Sócrates impede que se mostre à mãe que pensa abortar as ecografias do seu filho! Com uma população fortemente envelhecida, a quebra da natalidade no nosso país é assustadora! Desde essa regulamentação fizeram-se, até 2018 (último ano em que há estatísticas), perto de 200.000 IVG. A população de uma cidade como Setúbal! Nas últimas semanas, os media têm dado conta da possibilidade de um juiz, professor catedrático de Direito, ser descriminado no seu processo de acesso ao Tribunal Constitucional, por não ser favorável ao aborto!
Alega-se que muitas gravidezes não são planeadas. E é verdade. Todos o sabemos. Faz parte da história da humanidade. É desejável, dentro do possível, planear a vida familiar, claro. Mas uma gravidez não planeada é comum e não consta que as crianças nascidas de gravidezes não planeadas não sejam amadas pelos pais. Pelo contrário, a maior parte das mães e pais tem evidente amor aos filhos de gravidezes não planeadas, mesmo com tentativas de aborto. É público e paradigmático o caso da gravidez de que nasceu Cristiano Ronaldo.
De resto, é impossível planear a vida toda. A nossa e a dos outros, muito menos a de uma criança com uma vida inteira pela frente. Quantos planos óptimos não saem frustrados? A vida é cheia de surpresas, muitas vezes desastres e doenças. Não é possível ter garantia prévia, para cada gravidez, de que tudo corra sem dificuldades, com boa saúde e carteira recheada.
Alega-se também o estado de necessidade e a existência de casos especiais. E compreende-se que haja ocasiões de grande dificuldade na vida de muitas mulheres e famílias. Mas, por que motivo a vida da criança não conta? Porque incomoda? Mesmo que se admitam atenuantes para esses casos, dá que pensar! E, havendo mães em estado de necessidade, não será que a solução não deverá passar antes por procurar resolver as dificuldades, mais do que por eliminar a criança? Não se pretende punir ninguém, mas defender a criança.
Há os bebés com diagnóstico pré-natal de malformação. É típico o caso das crianças com Síndrome de Down (Trissomia 21), hoje em dia, quase todas eliminadas antes de nascer. Porém, a experiência mostra que as famílias que as acolhem têm por elas, em geral, imenso amor e as acarinham do fundo do coração. Tenho uma vida profissional inteira dedicada a tratar crianças com coração malformado. E não identifico na minha memória casos de pais ou mães com desamor pelos seus filhos com doença cardíaca. Pelo contrário, devotam-lhe as maiores atenções e ternura, embora todos preferissem, obviamente, que as crianças fossem saudáveis.
Ressuscitam-se também argumentos estafados, como o “direito da mulher ao seu corpo”, quando toda a gente sabe que a criança é um ser distinto da mãe. De resto, é de notar o contraste entre o desprezo pela vida humana antes de nascer e o modo como se defendem – e bem! – as crianças, já nascidas, vítimas de maus-tratos, muitas vezes contra as próprias famílias.
Não pode marginalizar-se o núcleo da questão: em cada aborto há um ser humano por nascer que é morto. A lei só pode seguir um princípio: A defesa da vida.