Amenina pequena de olhos enormes e escuros compõe, vaidosa, o véu cor-de-rosa que lhe tapa a cabeça e apruma-se a rigor no meio das outras meninas, todas elas cor-de-rosa, compenetradas da sua importância no centro da festa.
Em seu redor, os adultos perfilam-se no entusiasmo da câmara de filmar que um homem de casaco grosso maneja sem grandes aptidões. Bigodes de feitios surpreendentes têm o brilho da graxa, chapéus de astrakhan coroam cabeças imponentes, rapazinhos imberbes afinam os instrumentos.
Um céu cinzento instalou-se sobre Khona Baku, a Cidade Velha. Eles dizem bakeu, com o eu lido à francesa e grafado com um 1 à moda turca que tanta influência tem sobre este velho país novo, tão antigo e, ao mesmo tempo, tão recentemente regressado à sua independência. Sob o monobloco tutelar da torre de Maiden, a Praça do Mercado regurgita de uma vida falsa à qual as meninas vestidas de cor-de-rosa dão um toque surreal. Uma música fortemente metálica e no entanto agradável paira sobre os edifícios e estende-se pela encosta até às águas escuras do Cáspio e, se calhar, até mais longe ainda, onde os picos negros dos poços de petróleo parecem estreitos vulcões de fumo ainda mais negro.
Mas, se há meninas cor-de-rosa na Praça do Mercado, não há meninos a todo o comprimento da verdura amarelada de Primorsky Park, um bosque de pinheiros e abetos paralelos ao mar e à Neftçilar Prospeckti onde se instalam os pesados edifícios governamentais ainda encimados pela foice e pelo martelo da desintegrada União Soviética que não houve tempo nem dinheiro para substituir por um quarto crescente renovado.
O comboio elétrico de miniatura cumpre as ordens dos carris em curvas e contracurvas de tristonha solidão; os baloiços limitam-se a oscilar de cada vez que o vento sopra de leste e traz consigo a agitação brusca do Cáspio e o frio insuportável das estepes; o brilho colorido dos desenhos perde a segurança da tinta no anúncio enferrujado da roda gigante adormecida. As crianças de Baku preferem os automóveis elétricos da Praça das Fontes. Um Pato Donald sem paciência senta-se molemente num banco a dar à taramela e a fumar um cigarro enquanto vai carregando as baterias dos seus carrinhos de choque modernos alugados por umas centenas de manat.
Adolescentes ocidentalizados vestidos de escuro juntam-se à porta do McDonalds por detrás do qual se ergue o prédio mais alto da cidade e o restaurante panorâmico que atrai a fauna insaciável dos novos-ricos de fatos pretos e óculos escuros; a estátua da poetisa Khurshudbanu Natavan reflete-se nas portas espelhadas do Cinema Azerbaijão que traz em cartaz uma versão de Titanic dobrada em azeri e recorda a velha tradição dos poetas persas e lembra que este também foi sempre um país de poetas; os telemóveis alugam-se baratos nas esquinas onde há tabuleiros que os exibem para consumo imediato. Ninguém parece ser capaz de dispensá-los. Sobretudo as mulheres de casacos de peles, botas pelos joelhos e saias curtas, muito curtas. Muito, muito curtas. Olhos provocantes desenhados a rímel, lábios grossos pintados a batom, olhares que se prolongam na avidez da observação demorada, confiante.
Há uns anos, em Moscovo, uma amiga russa falou-me do fenómeno da emancipação das mulheres nos países da ex-União Soviética. Descreveu-me a forma como elas foram ganhando os seus espaços na sociedade, na hierarquia das empresas. Mantêm-se ainda longe dos cargos governamentais, mas assumem uma independência feroz em relação aos homens. «Hoje», disse-me convicta, «a grande maioria das mulheres de Moscovo, por exemplo, prefere viver sozinha.
Nunca tivemos tantos divórcios, nunca nos sentimos tão capazes de conduzir os destinos das nossas vidas. Ao contrário do que acontece com os homens que parecem ter sofrido muito profundamente a terrível crise de identidade que se seguiu à desagregação da URSS». Fui tendo, depois, um pouco por toda a parte, oportunidade de confirmar essa verdade. Em Moscovo, em Novosibirsk, em Krasnoiarsk, em Irkutsk, em Tashkent, em Baku. A confiança vistosa das mulheres a contrastar com a melancolia dos homens; as roupas coloridas com que elas se vestem a chocar com a deprimente escuridão dos fatos deles; a exuberância dos seus gestos e das suas conversas a apagar as tertúlias macambúzias a que eles se dedicam.
No país do Ouro Negro
Os repuxos de água da Praça das Fontes entornam pingos esparsos em redor. As esplanadas enchem-se de gente, mas os estrangeiros são poucos. Ao longo da Alizada Kuçasi, os vendedores ambulantes espalham quinquilharias por debaixo das arcadas dos edifícios como numa feira da ladra espontânea que só terá fim quando a noite cair de vez, deixando as ruas entregues a um abandono infeliz e a um silêncio enorme interrompido de quando em vez pelo ladrar assustado de um cão vadio que estranha o nosso vaguear sem direção na busca de um bar ainda aberto que nos sirva a última vodka da madrugada.
Dois homens jogam xadrez teimosamente durante horas, esquecidos do seu negócio de retratos; velhos militares exibem a panóplia das medalhas do exército soviético e das resistências regionais e trocam-nas por meia-dúzia de dólares. Há, no meio do brilho do metal e do esmalte, a certeza das falsificações e, na compra, todos os cuidados são poucos. Máquinas fotográficas antigas, tachos, panelas, bricabraque de supremo mau gosto à mistura com os inevitáveis ábacos que nenhum lojista de Baku dispensa. Chamam-lhes computers ou IBM’s e riem-se sempre que o fazem.
Há pedaços deste país estranho que recusam o passar do tempo. O Hotel Canub, na Azerbaijan Prospekti (prospekti significa avenida), já viu certamente dias bem melhores do que estes em que a chegada de três viajantes portugueses meio exaustos não merece ao pravadnik de serviço mais do que o regateio de cinco dólares por noite e por cabeça.
Corredores enormes nos quais a humidade fez estragos irreparáveis, descarnando as paredes do estuque, quartos amplos e decrépitos, lençóis desfiados e toalhas esburacadas – apesar de tudo muito limpos! – casas de banho onde as canalizações fazem mais barulho do que os automóveis que passam na rua, quatro andares abaixo da janela pela qual se espreitam as traseiras dos prédios de um bairro indisfarçavelmente soviético.
No centro da cidade moderna, uma mistura confusa de estilos arquitetónicos das mais diversificadas influências, as pequenas mercearias parecem destinadas a ser devoradas pelos supermercados que surgem um pouco por toda à parte e nos quais nada falta, dos queijos franceses aos chocolates suíços, dos whiskies escoceses aos vinhos do Douro, do Alentejo e do Dão.
O petróleo foi o ponto de partida para o crescimento da economia azeri há mais de um século e continua a ser a trave mestra da sua sobrevivência. Desde 1994, quando o presidente Heydar Aliyev assinou aquele que ficou conhecido como o Negócio do Século com um consórcio de companhias estrangeiras de exploração de petróleo, que a aposta na exploração dos poços do Cáspio é uma das prioridades do Governo azeri. Os planos para a construção de novos pipelines que substituam o da era soviética que corria para norte, ao longo das margens do Mar Cáspio, através do Daguestão e da Tchechénia e, depois, para oeste em direção às estepes e ao Mar Negro.
Mas o Daguestão e a Tchetcnénia são, hoje em dia, terrenos devastados pela guerra e o novo pipeline, entretanto posto a funcionar, entre Baku e Supsa, na Geórgia, não satisfaz a necessidade dos grandes consumidores, como os Estados Unidos ou a Turquia que pretendem outro capaz de conduzir o petróleo diretamente até ao Mediterrâneo a despeito dos enormes custos que a obra acarretará.
Mas se o Ouro Negro trouxe a riqueza, trouxe também terríveis desigualdades sociais que Baku exibe de forma despudorada. Os BMW’s e os Mercedes luzidios deslizam rápidos pela Nizami Kuçasi, que corta a cidade na sua latitude, e misturam-se com os velhos Ladas que parecem correr o risco iminente de se desfazerem. Não há a suprema miséria das grandes urbes asiáticas, aqui onde a Ásia e a Europa se confundem, mas há uma pobreza evidente e indisfarçável. E há também, por todo o lado, a corrupção e o nepotismo que se instalaram no universo da política e das finanças e destruíram a classe média e deixaram uma pequena classe de gente muito rica e a indigência generalizada das massas.
No tempo de Alexandre
Azerbaijão é um nome esquisito e a sua origem perde-se na noite dos tempos. Livros de História remetem-no para os dias de Alexandre o Grande e para o governador do sudoeste do Cáucaso, Atropates. A região ficaria depois conhecida como Atropatenas e, mais tarde, em persa, como Aturpatakan. A corruptela da língua conduzi-la-ia para o nome que hoje tem e a vida do país ficou para sempre marcada pela dicotomia das influências, dividida entre os interesses russos, persas e turcos e, nos anos mais recentes, pelo terrível remoinho de conflitos étnicos que transformaram o Cáucaso num mosaico político de difícil compreensão.
Quando, em Fevereiro de 1988, explodiu o conflito do Nagorno-Karabakh, o Azerbaijão passou a abrir os telejornais de todo o Mundo. Até então, o Nagorno-Karabakh e o Azerbaijão tinham feito parte de uma república soviética comum. Nesse mês de Fevereiro, decidiram os habitantes do enclave, na sua grande maioria arménios, pela sua unificação com a vizinha Arménia, surgindo uma fortíssima contestação internacional perante a repressão levada a cabo por Moscovo e Baku contra a comunidade arménia do Nagorno-Karabakh.
O sentimento anti-arménio entrou então numa espiral incontrolável que terminou no terrível massacre de Sumqayit, uma bisonha cidade industrial a norte de Baku. As movimentações populares que se seguiram, com os azeris a serem expulsos da Arménia e do Nagorno-Karabakh e com os arménios a serem expulsos do Azerbaijão, valeram dias negros para países já de si martirizados pelas miscigenações estalinistas levadas a cabo na sua insensata procura da perfeição do Homem-Soviético, mas seriam o primeiro passo para uma independência que não tardaria.
Seria preciso esperar, no entanto, mais três anos. Só em 1991, num acto levado a cabo por várias repúblicas soviéticas, é que o Azerbaijão se declarou independente e Ayaz Mutalibov, dirigente do Partido Comunista Azeri, foi candidato único para uma presidência conquistada facilmente. Seria preciso esperar durante três duríssimos anos de conflitos armados nos quais a Frente Popular Azeri ganhou uma enorme preponderância e que serviram como pretexto para uma intervenção militar de Moscovo sobre Baku na noite de 19 para 20 de Janeiro de 1990. Mais de 130 civis foram mortos; mais de mil ficaram feridos. O povo azeri eternizou a expressão de Janeiro Negro e a revolta galvanizou o apoio social, endurecendo definitivamente as posições em relação a Moscovo.
Mas a independência não trouxe a tranquilidade imediata a um país convulso. Em 1992, eclodiu a guerra com a Arménia tendo novamente o Nagorno-Karabakh como motivo, e só na vigência do atual presidente, Heydar Aliyev, em Maio de 1994, se assinou o cessar-fogo que não tem impedido, no entanto, a continuação de escaramuças que tornam, ainda hoje, o enclave praticamente inacessível a estrangeiros.
E fez regressar cerca de um milhão e duzentos mil arménios que habitavam os territórios azeris ocupados e se transformaram em refugiados dentro da sua própria terra. Talvez também por isso, Baku não perca, apesar destes novos tempos pacificados, o seu ar de cidade triste e melancólica. Talvez também por isso, os ashugs, os rapsodos de rua, dedilhem melodias angustiadas nos seus tars e nos seus kamanchas, os instrumentos de corda que lançam sobre a Praça do Mercado e sobre a Cidade Velha uma música dolente ao som da qual meninas vestidas de cor-de-rosa dançam envergonhadas sob os olhares sérios de homens velhos.
Quando a noite cai, o Bar Bar Restaurant anima-se com a festa de aniversário de um garoto minúsculo que dança igualmente no centro de adultos embevecidos. As músicas são outras: têm a alegria natural das festas, cantam-se em inglês e são acompanhadas pelo som desafinado de uma guitarra elétrica e de um órgão pequeno mas estridente. O caviar é barato e de boa qualidade, o vinho seco – e só o seco! – Karavansarai, merece a prova agradável do palato.
O desenrolar mecânico das travessas de pratos variados desafiam a curiosidade dos sabores: baliq; dograma; dolma; dovga; lavangi e o inevitável plov. Fatias de esturjão, pedaços de carneiro mergulhados em iogurte, pato negro esmagado por inteiro em forma de mousse, galinha com castanhas e ervas aromáticas, arroz de carneiro com passas e cebola desfiada. Tudo desliza lentamente nos caminhos da garganta por entre horas de conversa até ao toque final da vodka da despedida.
Pelas três horas da manhã, as ruas desertas da Cidade dos Ventos (bad kube – Baku, em persa, queria dizer isso mesmo, cidade dos ventos) ignoram os minaretes das mesquitas perdidas na escuridão. O islão diluiu-se numa atmosfera descontraída que perpassou os anos e na realidade feroz do ateísmo soviético. Os muezzins cantarão pela manhã a primeira oração do dia, mas poucos interromperão o movimento das suas vidas para escutar os ensinamentos do Corão. E os ventos continuarão a soprar do leste, desinquietando as águas do Cáspio, trazendo consigo o frio insuportável das estepes e quem sabe se um movimento insubmisso de esperanças.