Nuno Cerejeira Namora
Advogado Especialista em Direito do Trabalho
No início de 2020, foi apresentada no Parlamento uma petição pública, assinada por cerca de 4000 pessoas, que tinha o seguinte título: ‘Legalização da prostituição em Portugal e/ou despenalização de lenocínio, desde que este não seja por coação’. A primeira subscritora dessa petição foi Ana Loureiro, que publicamente se apresenta como acompanhante de luxo e ativista pela prostituição.
A petição apresentada aos deputados pretende duas coisas distintas: regulamentar a prostituição enquanto atividade e despenalizar o lenocínio, mas apenas quando o fomento ou facilitação da prostituição ocorra mediante a exploração, com fins lucrativos, de casas ou estabelecimentos destinados a esse fim e para tal licenciados.
No primeiro eixo, os peticionários propõem que a prostituição tenha como idade mínima de entrada os 21 anos, que apenas possa ser exercida por pessoas cuja permanência no país seja legal, além de terem de dispor de contratos, estando obrigatoriamente sujeitas a descontos e às mesmas regalias sociais que qualquer outro trabalho. Propõem, ainda, que os profissionais sejam obrigados a realizar exames médicos semestrais, os quais são ‘afixados’ nos estabelecimentos. A sugestão que dão para a designação do setor de atividade é o de ‘Divertimento Adulto’.
Quanto ao segundo eixo, este prende-se essencialmente com a visão que estes subscritores têm para a prostituição: uma profissão regulamentada que apenas pode ser exercida quando enquadrada em ‘Casas de Acompanhantes’. Ou seja, para Ana Loureiro e os restantes 4000 peticionários vender o corpo deve ser legal, mas só sob a forma de empresa.
Por coincidência (ou não…), a 1 junho de 2022 a petição foi apreciada no Plenário do Parlamento. No dia seguinte, a 2 de junho, comemora-se o Dia Internacional da Prostituta, efeméride aparentemente introduzida nos anos 70 na sequência de mais de 100 mulheres terem ocupado uma igreja França, protestando contra a repressão e discriminação que sofriam à época, tendo daí sido brutalmente expulsas pela polícia, o que originou uma onde de protestos em França e noutros países.
As intervenções dos parlamentares, no curto debate suscitado a propósito da apreciação da petição, foram, na maior parte dos casos, ambíguas: nenhum partido está disposto a apresentar iniciativas legislativas relacionadas com o tema e, se algum o fizer, pelo menos se o fizer no sentido da regulamentação da atividade ou da despenalização do lenocínio, terá garantidamente o voto contra do PCP e do Chega e o voto a favor da Iniciativa Liberal. No mais, todos parecem discordar do modelo ‘de bordel’ defendido na petição, com alguns a abrirem a porta ao debate não só para a regulamentação de certos aspetos da atividade, como para a própria despenalização do lenocínio (PS).
Sem tomar posição, nesta matéria estão em confronto, essencialmente, dois sistemas: o sistema abolicionista, em que a prostituição ou parte dela é criminalizada, praticando o crime ora quem se prostitui, ora quem adquire os serviços (este correspondendo ao modelo nórdico, implementado em países como a Suécia, a França, a Islândia ou a Noruega, onde a venda de serviços sexuais é permitida mas a sua compra é punida a nível criminal ou contraordenacional), ora quem os fomenta (este é o modelo português, que não criminaliza quem vende o corpo e quem o compra, mas sim quem facilita, promove ou intermedeia a prestação de serviços sexuais); e o sistema regulacionista ou liberal, no qual a prostituição é aceite e regulamentada como atividade económica, havendo direitos e deveres que protegem profissionais e clientes. Este último é, ainda, o menos aceite na Europa (apenas 8 países liberalizaram a prostituição, nomeadamente a Alemanha, a Holanda ou a Áustria).
Do ponto de vista judicial, a questão da criminalização do lenocínio sem coação não é pacífica. Abandonando a sua tradição de décadas, em 2020, o Tribunal Constitucional proferiu um Acórdão (134/2020) onde entendeu que o tipo incriminador do lenocínio era inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade da incriminação. Porém, em 2021, no Acórdão n.º 72/2021, o mesmo Tribunal volta a mudar de posição, pronunciando-se pela não inconstitucionalidade da norma que criminaliza o lenocínio, atendendo ao perigo, ainda que abstrato, que existe na atividade de facilitação da prostituição, criadora de verdadeiros empresários que criam um risco próximo de surgimento de situações de diminuição da liberdade e exploração humana como mercadoria comercial.
Esta variação de posições dos juízes do Palácio Ratton num tão curto espaço de tempo, apesar de apenas produzirem efeitos nos processos respetivos, merece aprofundamento, na medida em que pode revelar uma excessiva politização do Tribunal.
Julgamos que o próximo tema socialmente fraturante será o da legalização da prostituição ou, como diria Ana Loureiro, do «divertimento adulto». Quer sejamos abolicionistas ou liberais, importa reconhecer que o tema é tudo menos divertido, devendo haver lugar, daqui em diante, a um debate sério e esclarecedor sobre o assunto, o qual, além de necessariamente ter de envolver os profissionais do sexo (e não de quem vive à custa da prostituição alheia), tenha sempre em conta como absoluta prioridade os direitos fundamentais, a dignidade e a liberdade real destas pessoas.