Mesmo sendo uma das mais bem-sucedidas e aclamadas artistas pop de sempre, Kate Bush nunca foi muito conhecida por ser uma das estrelas mais comunicativas, optando por um estilo de vida reservado, que ajudou a formar a aura de mistério que faz parte da sua imagem de marca, portanto, algo de muito especial que tinha de acontecer para levar a inglesa a quebrar o seu silêncio e enviar uma mensagem aos seus fãs.
Mais do que um motivo especial… foi um motivo “estranho”. Graças à mais recente temporada da série da Netflix, Stranger Things, que conta com a música Running Up That Hill (1985) em diversas cenas cruciais e agora a música goza o seu maior sucesso desde que foi lançada há 37 anos.
Do walkman de Max (personagem da famosa série, interpretada por Sadie Sink), o single chegou, pela primeira vez, ao top 10 de vendas dos Estados Unidos, segundo a revista Billboard e, na altura, quando foi lançada alcançou apenas a 30.ª posição, ocupando ainda o primeiro lugar nas músicas mais ouvidas no Spotify. Em Portugal, Running Up That Hill também entrou no top 5 das músicas mais ouvidas.
Todo este novo interesse no trabalho da cantora levou a que esta fizesse uma rara declaração publicada, escrevendo um comunicado no seu site pessoal afirmando também ser fã de Stranger Things.
“Podem ter ouvido que a primeira parte da nova e fantástica série, Stranger Things, foi lançada recentemente na Netflix. Apresenta a música Running Up That Hill, que recebeu uma lufada de ar fresco por parte dos jovens fãs que adoram a série. Também sou uma grande fã! Por causa disto, Running Up That Hill, está novamente nas listas de músicas mais ouvidas em todo o mundo e, no Reino Unido, está no oitavo lugar. É tudo muito emocionante! Muito obrigado a todos que apoiaram a música”, escreveu a artista inglesa, acrescentando que “mal pode esperar pela conclusão da série em julho”, uma vez que no dia 1 estreiam os últimos dois episódios da temporada.
Apesar desta nova vida de Running Up That Hill e a redescoberta do espólio de Kate Bush, a sua discografia é uma das mais influentes entre a música popular e também uma das histórias mais fascinantes.
Do empurrão de Gilmour a um incomparável sucesso Nascida numa quinta com mais de 350 anos e no seio de uma família que estava envolvida no meio artístico, a sua mãe, uma enfermeira, era uma dançarina irlandesa amadora, o seu pai, que trabalhava como médico, era um pianista amador, e os seus irmãos faziam parte da cena folk local, desde muito cedo que Catherine Bush mostrou um grande interesse para a música, onde, com apenas 11 anos, aprendeu sozinha a tocar piano e começou a compor músicas.
A vida de Bush iria mudar quando Ricky Hopper, um amigo da sua família, entregaria ao guitarrista dos Pink Floyd, David Gilmour, uma cassete com mais de 50 demos caseiras gravadas pela jovem que o deixou completamente encantado. Kate tinha apenas 13 anos.
Com a ajuda de Gilmour, Kate gravaria uma nova cassete, desta vez com uma produção mais profissional, que seria entregue à editora EMI.
Estes ficaram encantados com o trabalho da artista, a industria musical inglesa encontrava-se estagnada e muitos acreditavam que o futuro da música encontrava-se nos artistas rock com uma orientação também focada na sua performance, por isso, a veia experimental de Kate Bush era algo que interessava à editora.
Depois de assinar um contrato com a EMI, estes ofereceram-lhe um pagamento em avanço que esta utilizou para ter aulas de dança interpretativa, ensinadas por Lindsay Kemp, antiga professora de David Bowie, e aulas de mimo, componentes que viria a adotar nos videoclips das suas músicas e também nos concertos.
Anos depois, após ter realizado uma série de concertos com a KT Bush Band, a artista finalmente começou a gravar o seu disco de estreia, The Kick Inside (1978), um disco marcado pela forma aberta como Kate escrevia sobre a sexualidade feminina, nomeadamente nas faixas Feel It ou L’Amour Looks Something Like You, mas também como incluía referências cinematográficas e literárias, incluindo na faixa mais popular do disco.
Inspirada no livro de Emily Brontë, Wuthering Heights, que deu nome ao single, Kate Bush transformou-se numa estrela no panorama musical britânico, tornando-se a primeira cantora a ter um single escrito pela própria a atingir o número um nas tabelas de vendas. A música foi escrita quando a cantora tinha 18 anos.
A canção sobre romance de Cathy e Heathcliff ainda hoje é celebrada, pelo caráter experimental do instrumental, da técnica vocal e da forma como a letra é escrita, e criou uma legião de fãs que os inspirou a criar um evento, que já aconteceu em locais como Perth, Sydney, Tel Aviv, Montreal, Atlanta, Copenhaga, Berlim, Wellington, ou Amesterdão, onde uma multidão se junta com um vestido vermelho semelhante ao que a cantora utilizou no videoclip de Wuthering Heights para recriar o momento.
Depois de Lionheart (1978), Never for Ever (1980) e The Dreaming (1982), recebido com algum ceticismo, devido às técnicas pouco convencionais utilizadas na criação do disco, que resultou numa dececionante resposta comercial (apesar dos elevados custos do disco), a artista decidiu criar um estúdio privado em casa onde poderia gravar as músicas como pretendia, ao seu próprio ritmo, sem ter de se preocupar com pressões adicionais do estúdio nem dos custos que o álbum iria acarretar.
Destas sessões resultaram o disco que é considerado a obra-prima da sua discografia, Hounds of Love (1985). O disco é dividido em duas partes, a primeira repleta de singles, com algumas das mais famosas músicas da cantora, e uma segunda parte, intitulada The Ninth Wave, que é uma peça conceptual e experimental inspirada pelo conto de uma mulher perdida no mar.
Na primeira parte do disco, a abrir as hostilidades, encontramos a música que inspirou este artigo, Running Up That Hill, que originalmente tinha o título A Deal with God, que foi abandonado por conselho da editora, ao dizer que o conteúdo religioso poderia ferir as suscetibilidades dos ouvintes.
“A música é sobre uma relação entre um homem e uma mulher. Amam-se muito, mas o poder da relação é algo que os atrapalha”, explicou a cantora numa entrevista que data o lançamento do disco, citada pelo blog Far Out, acrescentando que este sentimento “cria inseguranças”.
“Estou a tentar dizer que se o homem pudesse ser a mulher e a mulher o homem, se pudessem fazer um acordo com Deus, trocar de lugar, eles se então entenderiam como é ser o outro e ajudasse a esclarecer mal-entendidos”, disse.
A cantora explicou que a frase “running up that hill” está ligada à expressão “colocar-se nos sapatos de outra pessoa”, cujo significado representa aquilo que a cantora estava a dizer nos parágrafos anteriores, algo que inclusive inspirou a série da HBO, It’s a Sin, a utilizar como uma alegoria para a experiência da comunidade LGBT+, oferecendo ainda uma nova visão à música, nomeadamente sobre a transição das pessoas transgénico.
A música de Kate Bush já passou por muitas fases e muitos ouvidos, agora está a ser consumida por uma nova audiência que está a descobrir a retraída cantora. Pode ser que todo este novo interesse inspire a cantora a voltar ao ativo e a realizar novos concertos, o último aconteceu em outubro de 2014. Não só os novos fãs agradeciam, como o seu mais fiel e antigo público corria colinas para ver a sua cantora favorita.