Todas as manhãs, quando vou levar um dos meus filhos à escola, tenho de esperar no carro pela hora certa para ele entrar. Em 2020, quando a escola reabriu depois da pandemia, foi decretado que todos nos contagiaríamos menos se os alunos não esperassem pelo início das aulas no recreio, mas sim no meio da rua. A rua é estreita, não tem passeio, os carros passam com dificuldade, mas certamente o amontoado de crianças (e adultos) que esperam num espaço reduzido pela abertura da porta – faça chuva ou faça sol – estará muito mais seguro ali fora do que a brincar no recreio como fará, de qualquer forma, ao longo do dia. Ou seja, ser atropelado ou ser contagiado na rua será sempre muito melhor do que dentro da escola. Já os alunos que pagam um extra para entrarem antes das 9h15m parecem estar imunes.
Embora todas as manhãs me enerve ter de compactuar com aquele absurdo, agora que as aulas estão quase a acabar penso que pode ser que o próximo ano traga o bom senso de volta a quem ainda não o recuperou.
Mas o que dizer das cerimónias fúnebres que ainda não voltaram à normalidade? É que os meus filhos vão andar na escola por muitos mais anos, se Deus quiser, mas o velório de um ente querido é uma coisa que acontece uma vez na vida. Depois de os velórios terem sido proibidos durante muito tempo, neste momento são permitidos em alguns casos e de acordo com algumas regras como o limite máximo de pessoas na sala, cumprimentos de distanciamento social ou utilização de máscara. Tudo coisas que fazem imenso sentido quando se precisa de um abraço apertado ou um beijinho.
Se não fosse o caso de ser aconselhado o caixão estar fechado, concluiria que todas estas regras seriam para não infetar o defunto, sendo que os vivos podem estar livremente em jantaradas, discotecas e bares sem terem de cumprir distanciamento ou usar máscara.
Pior e mais absurdo é se a causa da morte for por covid, se o finado quando morreu tinha covid ou ainda caso tenha fortes indícios de ter sido infetado antes de morrer (por exemplo no hospital, por ter estado numa enfermaria com pessoas infetadas) mesmo que isso não tenha sido confirmado. Nestes casos o velório é proibido e o corpo vai diretamente para o local da cremação ou sepultura. As pessoas que decidiram ou se esqueceram de mudar as regras relativamente aos velórios devem ser as mesmas que tomaram a decisão relativamente à entrada na escola do meu filho. Mas ao contrário do que se passa todas as manhãs aqui o sentimento é outro. Não é só o de ter de compactuar com o absurdo, mas é um sentimento de invasão, de revolta, de abuso. Ainda que um defunto possa manter o vírus vivo por bastante tempo, por definição não vai espirrar, não vai tossir, não se vai mover, não vai sequer respirar. É um mistério como, numa altura destas, passados mais de dois anos de convívio com este vírus, ainda se proíba velórios. Faz algum sentido privar alguém de velar um familiar uma última vez? Roubar este último adeus, estes últimos momentos, é não só irracional e descabido, mas de uma enorme insensibilidade. Diria mesmo que ter de cumprir uma regra tão absurda como esta chega a ser humilhante.