Veio há dias à minha consulta um casal, na casa dos setenta anos, para saber o meu parecer em relação a umas análises que outro colega tinha requisitado.
Esses exames laboratoriais mostravam uma diabetes muito descontrolada, um aumento exagerado do colesterol e um ácido úrico também acima dos valores normais.
Ao analisar os resultados, perguntei ao homem: «Não tem médico de família?». «Já tive mas agora não tenho. Reformou-se e ainda estou à espera que me deem outro», respondeu-me. «Ando por aí à deriva…».
Continuei a perguntar: «Faz medicação? Será que faz a alimentação correta?». Aí, a mulher antecipou-se e respondeu por ele: «Não, senhor doutor. Ele não liga nada a isso. Não tem cuidado nenhum com a alimentação nem com os medicamentos. Já o avisei várias vezes: qualquer dia tens um problema sério! Quem semeia ventos colhe tempestades».
Comprometido, o homem ficou em silêncio, em sinal de concordância com os comentários da mulher. «Têm filhos?», perguntei. «Temos dois, mas já são grandes e fazem a vida deles… Pouco nos acompanham», respondeu ele embaraçadamente. «E, como pais, estiveram sempre presentes na infância e adolescência deles?». Aqui, o homem pareceu cair em si e admitiu: «Nem sempre. Tenho de reconhecer que, por vezes, preocupei-me demasiado com o trabalho».
Este caso, igual a muitos que bem conhecemos, permite pôr em evidência alguns aspetos que nunca é demais analisar.
Em primeiro lugar, o doente: uma pessoa descuidada consigo mesma, que ainda não percebeu que não podem ser só os médicos nem os medicamentos a resolver todas as situações.
Acima de tudo é preciso força de vontade para cumprir as recomendações feitas, não só no plano terapêutico como nas medidas não-farmacológicas; e depois confiar incondicionalmente no clínico que nos acompanha.
Em seguida, aparece o crónico problema do Serviço Nacional de Saúde, que continua a deixar milhares de portugueses sem assistência médica, permitindo que os fatores de risco fiquem a descoberto, comprometendo vidas humanas.
Num recente comunicado da Ordem dos Médicos, o número de portugueses sem médico de família no final de abril era de 1.299.376 – quando, no período homólogo de 2021, era de 909.208. Ou seja, num ano aumentou 390 mil!
Paralelamente, a emigração de médicos disparou em 2021, sendo o valor mais alto dos últimos cinco anos.
Perante esta realidade, pergunto: ninguém terá uma palavra a dizer? Vamos continuar a assistir a este espetáculo desolador, fingindo que está tudo bem?
E posso concluir: se o Estado não se importa com os ventos que semeia, vão ser os utentes a colher as tempestades!
Por fim, vem a família, um pilar fundamental da sociedade, para o qual tenho vindo a chamar a atenção repetidas vezes. São muitas as críticas apontadas aos jovens de hoje, mas ninguém procura saber o que está por detrás do seu comportamento. Em muitos casos, os pais demitem-se do dever elementar de estarem presentes nos momentos cruciais da vida dos filhos, por terem a sua preocupação concentrada noutras áreas, esquecendo que uma criança precisa da presença do pai e da mãe. Os resultados desses ventos semeados aparecem mais tarde, quando já pouco se pode fazer. Por isso, muitos casais, provavelmente como os do caso apresentado, sentem-se sós, tristes e abandonados ao chegar a terceira idade.
Ouvi um dia dizer a um idoso – com um toque de humor – que só podíamos perceber bem o que é a terceira idade depois de termos passado pela primeira e pela segunda. Ora, esta afirmação tem um alcance bem mais profundo do que parece. Passámos mesmo pela primeira e pela segunda idades – ou foram elas que passaram por nós sem darmos por isso? Aproveitámos o que tínhamos de aproveitar? Prevenimos o que devia ser prevenido? Demos na altura certa os passos que devíamos ter dado?
Quem sabe se não desperdiçámos oportunidades e não andámos entretidos e ocupados com coisas insignificantes, dando mais valor a futilidades sem interesse algum, perdendo tempo a correr atrás de miragens que não passavam de ilusões e utopias?
Na história de cada um há quase sempre uma explicação mais ou menos escondida para aquilo que hoje nos acontece e para os problemas que agora temos pela frente.
Ponhamos a mão na consciência e interroguemo-nos: que ventos semeei eu ao longo da vida? E essa sementeira foi apenas no campo da minha vida ou também em terreno alheio? Uma coisa é certa: se não quisermos ter tempestades na hora da colheita, devemos evitar os ventos que, consciente ou inconscientemente, acabamos muitas vezes por semear.