Estava um tipo lá na velha Galileia, há 2022 anos, tranquilo da vida a aplainar, que era para o que tinha jeito e lhe dava para as côdeas, quando o bichinho da desconfiança começou a roê-lo por dentro e pô-lo numa pilha de nervos. Ser marceneiro na velha Galileia era uma profissão estimada e os seus seguidores eram tratados com respeito e com consideração. Ou seja, José, que também era conhecido por José de Nazaré, José Carpinteiro ou José Operário, não tinha muito de que se queixar, era dedicado ao seu dia a dia, tinha acabado de se comprometer com uma moçoila chamada Maria, dispunha do seu grupo de amigos com quem se dedicar a umas rapaziadas, mas o raio da rapariga viria a dar-lhe cabo da existência de um momento para o outro.
Estava agora aqui a espreitar uma notas que recolhi para este texto – que aviso já ser completamente iconoclástico, pelo que não o recomendo a crentes muito, muito crentes – e descobri, por exemplo, que as_Epístolas de Paulo, consideradas as mais antigas das Escrituras, referem a mãe de Jesus, embora não pelo nome, e ignoram por completo o seu pai. Terreno, claro. O lá de cima é falado a torto e a direito. Mais uma prova da teoria que defendo: São José é, muito provavelmente, o mais mal tratado de todos os santos das litografias. Porquê? Eis uma boa pergunta. E difícil de responder, a menos que atribuíssemos a Deus a fraqueza de ter ciúmes do marido da amante (peço desculpa, mas não encontro expressão mais a propósito, ainda que amante por interposta pessoa ou, neste caso, por interposta ave).
Ainda há uns dias, assistindo ao casamento de uma sobrinha numa capela perto de Oliveira de Azeméis, dei com a imagem de José puxando o burro no qual está arribada a sua gravidíssima esposa e dei por mim a perguntar: «O que é feito deste gajo?». É que, convenhamos, ninguém reza a São José. Ninguém apela pelo seu nome, mesmo em vão. O mamífero cumpriu o seu papel, ainda andou com o menino ao colo (vá lá, uma voltinha ou outra), e acabou por ser apagado da história da cristandade. Não se faz… Não se faz…
Parece que (nestas coisas que se passaram há 2022 anos a memória não é de fiar) José, enquanto aplainava, lá na Galileia, andava com o bichinho atrás da orelha, isto é, desconfiava de Maria e achava que esta o andava a enganar. Estando noivos e ainda não tendo tido conhecimento, no sentido bíblico, um do outro, a desconfiança transformou-se em certeza quando deu por ela a criar barriga de um dia para o outro. Decidiu tirar satisfações. E, com a certeza de que não era o responsável por tal gravidez, iria terminar todo o tipo de contactos com a, para ele, leviana Maria.
É aqui que entra um anjo.
Há anjos em barda no Velho e no Novo Testamento, mais do que pombas em Lisboa. A sua tarefa era, geralmente, a de entregar recados, pelo que podemos considerá-los anjos-correio. Pessoalmente, desconfio de anjos. Aliás, desconfio de toda a gente que não tem sexo, desculpem lá, não é normal, ter sexo dá sempre jeito, não de ter sexo sexo, que esse dá até muito jeito, sem dúvida, mas sexo de pendurezas ou regos, essas coisas mais antropomórficas. Abro aqui um parêntesis para acrescentar que quase todos os anjos que vi até hoje, em pinturas ou esculturas sacras, costumam exibir uma pilinha, por exígua que seja, o que defende a teoria que os anjos são do género masculino. Aliás, dizemos anjos e não anjas. E depois têm nomes como Rafael e Gabriel que são, vamos e venhamos, muito pouco femininos. Enfim, se há coisa que eu não vinha preparado para debater aqui era o sexo dos anjos, até porque não tenho espaço nem pachorra. O que importa para esta algaraviada é que José estava a dormir, às marradas na almofada, sonhando tristemente com Maria a enganá-lo, quando apareceu um anjo. E explicou-lhe tudo. Se José acreditou ou não já são outros quinhentos…
Um José pouco convencido
Não pensem que José, lá por ganhar a vida a aplainar tábuas e a pregá-las umas às outras era algum labrego. Longe disso. Era descendente de gente fina, vinha da linhagem do autêntico Rei David, o fundador do judaísmo e unificador de todas as tribos de Israel, e como tal tinha o orgulho muito à flor da pele. No Evangelho_Segundo São Mateus, a zanga de José de Nazaré ficou registada per omnia saecolum et saecculorum: «Sendo um homem de bem e recusando-se a colocar Maria sob a desgraça pública, depois de a encontrar grávida, decidiu separar-se dela da forma mais discreta possível». Nada a dizer, eu faria o mesmo. Mas de certeza que não me iria aparecer um anjo, a bater as asinhas, e a fazer-me engolir uma história um bocado inverosímil.
No sonho de José, o anjo foi muito direto com o infeliz que, nessa altura, sofria a bom sofrer. Limitou-se a explicar que Maria continuava virgem (é preciso sublinhar a dado passo, e não vejo melhor do que este, que virgindade ou castidade eram, na época, virtudes de todas as mulheres ainda não casadas – isto é, mais ou menos ao contrário do que nos dias de hoje), que trazia no ventre o filho de Deus e que este lá fora plantado através do Espírito Santo. Ora, como toda a gente sabe que o Espírito Santo surge aos homens em forma de pomba, supondo que fazia tal igualmente em relação às mulheres, o bom do José deve ter ficado mais confuso do que nunca. Vamos lá ver: não é por acaso que andamos há mais de dois mil anos às voltas com a questão da Santíssima Trindade. Eu, que ainda papei muitas aulas de catequese, devo ter chumbado a essa cadeira específica porque ainda hoje não consigo que o bestunto a digira. José era, sem dúvidas, um bonsaraz, mas de parvo não teria nada. Talvez por isso só em 1870 tenha sido oficializado pelo Papa Pio IX como_Patrono Oficial da Igreja, surgindo na liturgia romana apenas em 1479, e sendo geralmente ignorado pelos católicos dos nossos dias que viram o seu dia ser atirado para 1 de Maio, Dia do Trabalhador, algo que de facto sempre foi e nunca houve ninguém a desmentir-lhe essa virtude. Seja como for, encolheu os ombros, e casou-se com Maria, fosse ela ou não amante de Deus que, sem tempo para atividades carnais, enviou o Espírito Santo para tratar do assunto.
Muito bem: nasce Jesus – em Belém, na Judeia, perto de Jerusalém e suficientemente longe para que as más-línguas lá chegassem vindas de Nazaré – e José tornou-se o pai oficial da criança, pudera!, o Espírito Santo não devia ter grande pachorra para burocracias. Vale o que vale. Também tenho uma filha à qual a mãe deu o nome de um pai da tanga, e palavra de honra que a pequenina não veio ao mundo fruto de nenhuma imaculada conceção e, por mais que o lorpa ande por aí a jurar a pés juntos a paternidade dela, não engana nem o Menino Jesus, como se costuma dizer e vem aqui a todo o propósito. Nunca ninguém indicou ao certo a data de nascimento de José (já na do filho fazem festas de arromba todos os natais), mas parece mais ou menos aceitável universalmente que era um bom bocado mais velho do que a mulher. Há quem diga (lá estamos nós a contas com a boataria imparável do ano-zero) que até já tinha tido filhos de um casamento anterior. Enfim, também não era nenhum santo, cala-te boca, valha-me Deus!
Estava a criança ainda a ser bafada pela vaca e pelo burro e eis que já outro anjo aparecia ao jovem casal. Lá está, como não dizer que os anjos eram mais do que as pombas se, ainda por cima, havia anjos e santos (e Deus, já agora) que se faziam passar por pombas? Magi, o Homem-da-Sabedoria, uma espécie de anjo mais acima na hierarquia, avisou José e Maria que se pusessem a andar, e depressinha, porque o rei da Grande Judeia, um tipo bastante mal-formado chamado Herodes, irritado ao saber que tinha vindo ao mundo um cachopo chamado Jesus Cristo para ser, por vontade de seu pai, God Himself, o Iēsus Nazarēnus Rēx Iūdaeōrum, rei de todos os judeus, estava a condenar à morte todos os infantes recém-nascidos. José arreou o burro, pôs-lhe a Senhora e o Menino à albarda, e tratou de começar a fugir para o Egipto até que, pelo caminho, o anjo veio dar o dito por não dito, garantindo que Herodes tinha morrido entretanto, e era seguro que a Sagrada Família regressasse à Terra Santa. Preparem-se que José não vai durar muito mais tempo.
O fim de José
Ricardo Reis tem um belíssimo poema que retrata sem pruridos a tão confusa Sagrada Família: «O seu pai era duas pessoas – Um velho chamado José, que era carpinteiro/E que não era pai dele/E o outro pai era uma pomba estúpida/A única pomba feia do mundo/Porque nem era do mundo nem era pomba/E a sua mãe não tinha amado antes de o ter/Não era mulher: era uma mala/Em que ele tinha vindo do céu/E queriam que ele, que só nascera da mãe/E que nunca tivera pai para amar com respeito/Pregasse a bondade e a justiça!».
José sai dele muito mal tratado. Até velho lhe chama (ora batatas!, se José era velho, Deus era o quê?), e considera-o incapaz de pregar a bondade e a justiça, coisa que, para sermos objetivos, parece que José nunca fez. Aliás, leia a gente a Bíblia de trás para a frente, e que funções teve José na consolidação da cristandade tirando esse pormenor de perfilhar um filho do qual desconhecia por completo o verdadeiro pai, por mais angélicas garantias que era de um pomba enviada pelo Senhor? Basicamente, vemo-lo como um pau mandado, tentando ser útil, puxando o burro para um lado e para o outro por entre oliveiras e azinheiras. Tirando a insuportável companhia do onagro, há imagens pintadas dele com o filho, ou o que lhe queiram chamar. Reis tinha toda a razão: parecem avô e neto.
Mateus, que será provavelmente, o único escritor de Evangelhos que perde tempo a acrescentar pormenores, ainda que pouco suculentos, à existência de José, refere que ele resolveu regressar à Nazaré com Maria e Jesus e resolveu ter uma palavra sobre a matéria da educação do miúdo: ensinou-lhe a profissão que sabia e não foi preciso esperar muito para que Jesus gostasse tanto de aplainar como o pai. A partir daqui, subitamente, José desaparece, e ninguém se preocupou grandemente com isso. Para ser franco, as Escritura estiveram-se absolutamente nas tintas para ele. A última vez que teve direito a ser mencionado, foi por Lucas, no episódio em que ele e Maria andam por Jerusalém que nem dois tontos à procura de Jesus por todas as esquinas da cidade e, de repente, dão por ele num templo a falar aos fiéis. Ainda por cima, a despedida de José, que podia ser filmada sentado num burro em direção ao pôr-do-sol cantando «I’m a lonesone cowboy», foi resolvida com uma bronca do (vá lá) filho: «Mas andam à minha procura a que propósito. Não sabem que devo estar na casa do meu pai?». Não consigo imaginar maior achincalho. Aceitemos que, para o humilhar por completo, só sendo mandado à merda desta forma pela criancinha cuja paternidade assumiu, engolindo um elefante sem direito a alka-seltzer.
Certo será – dentro do possível – que José não foi testemunha da ascensão de Jesus aos céus e muito menos das privações a que foi submetido, com crucificação, coroa de espinhos e o diabo a quatro. As razões do seu falecimento são absolutamente desconhecidas. João, no seu Evangelho, jura a pés juntos que nunca veio a saber que o universo o reconheceu como o filho de Deus, o que até pode ter sido bom para a sua auto-estima.
Mais uma vez não há qualquer registo nas Escrituras sobre a morte do putativo pai de Cristo, o que não deixa de ser estranho e, sobretudo, de uma desconsideração inenarrável, sendo a figura quem foi, contra a sua vontade ou não. Serve-lhe de consolo um livro escrito em grego que apareceu não se sabe bem de onde no Egipto bizantino intitulado Historia Josephi Fabri Lignari. Afirma o autor incógnito que José foi pai de quatro filhos – Judas, Justus, Jaime e Simão – e de duas filhas – Assia e Lidia – antes de desposar Maria, e que se manteve miraculosamente saudável de corpo e espírito até aos 111 anos de idade. Pelos vistos, ao expirar, ter-se-á amargamente arrependido dos seus pecados carnais. Preferia, pelos vistos, que Jesus tivesse nascido de dois pais virgens.