Em 1813, o general Louis Henri Loison tinha esgotado a paciência de Napoleão Bonaparte. Há que dizer que o humor do Imperador não estava numa das suas fases mais brilhantes depois de os seus exércitos terem levado para assar, na Campanha da Rússia, um desastre militar de enormes proporções que custou aos franceses o total de cerca de 400 mil mortos, 50 mil aleijados, 80 mil desertores e 100 mil prisioneiros apanhados pelo inimigo. Uma daquelas esculhambações de deixarem qualquer corso, gente que é dona de um orgulho muito particular, num estado de nervos capaz de assassinar o primeiro idiota que resolva soltar uma pilhéria num raio de cinquenta quilómetros quadrados. E, bem corso como era, Bonaparte tratou de fazer contas com os derrotados. Ou seja, com os seu próprios homens, já que ele nunca foi culpado por perder uma batalha, embora tenha sido endeusado por ganhar muitas. Calhou a Loison cair em desgraça na altura, azar o dele, ninguém se preocupou muito com o assunto. Foi condenado por não se bater decentemente na frente. Louis Henri não era, definitivamente, uma personagem estimada. Bem pelo contrário. Os portugueses que o digam.
Ainda hoje, a expressão «Ir para o Maneta» provoca arrepios na espinha, imagine-se o que seria no início de 1800 quando esta besta de 124 patas surgiu pelas redondezas como um dos generais responsáveis por dominarem de uma vez por todas a rebeldia ibérica, sobretudo a lusitana, que resistia ainda e sempre ao invasor, se bem que com a indispensável ajuda dos compadres ingleses. O bicho tinha tal fama de crueldade para com os inimigos capturados que ir para o Maneta era uma daquelas viagens sem regresso. Não deixou, por isso, de ser um dos valentes soldados de França que têm o seu nome inscrito no Arco do Triunfo. Pouco tolerado por cá, ainda conseguiu manter certo prestígio no seu próprio país. Vale o que vale. Um historiador francês, chamado Charles Mullié, considerava o mamífero sem dúvida corajoso mas dotado de uma face negra preocupante. E não era da cor da pele que estava a falar. Era mesmo da alma. Um dos seus pecadilhos, se assim lhes quisermos chamar, era o de ter a mão leve (a outra não pesava nada) na altura de invadir propriedades alheias, pilhando tudo o que podia sem dar cavaco aos seus comandantes, atrevimento que viria a custar-lhe caro por mais do que uma vez já que passou umas temporadas no cárcere, assim de modo um pouco avulso. Depois lá prometia que iria corrigir-se e saltava para o dorso do cavalo em direção à frente de batalha, fosse ela onde fosse.
A caminho de Portugal!
No dia 14 de Junho de 1804, Louis Henri andava inchado como um peru do cabaz do Natal: tinha sido nomeado Grande Oficial da Legião de Honra. Seguiram-se uma série de vitórias bastante honrosas nas campanhas da Áustria e da Suíça e, por uns tempos, a sua tendência para se apropriar de bens que não eram seus caiu no esquecimento. Ou então passava demasiado tempo a dar ordens e a brandir a espada, faltando-lhe folga para as patifarias.
Como chefe de um dos batalhões do general Jean-Andoche Junot, mais tarde nomeado 1º Duque de Abrantes, Loison pôs-se a caminho de Portugal em Outubro de 1807, atravessando uma Espanha amiga com certa facilidade (percorreu 500km em 25 dias) inserido num exército de mais de 26 mil soldados, e chegando a Salamanca a 12 de Novembro. Faltava um saltinho de pardal. Mas a resistência organizou-se e passou a fazer estragos. A qualquer momento, as tropas portuguesas receberiam o apoio dos seus aliados ingleses. Havia que apressar a coisa. De tal modo que, mesmo à distância, Napoleão decidiu intervir, distribuindo umas ordens aqui e ali, ordens essas que fizeram com que Junot atravessasse a fronteira em Alcântara, devendo tomar o caminho de Lisboa por Castelo Branco e Abrantes. A Loison coube invadir Almeida, na Beira-Alta, distrito da Guarda. Nascido em Damvilliers, na Lorraine, no dia 13 de Maio de 1771, já era conhecido nos meios militares franceses por Le Manchot (O Maneta), pois perdera o braço esquerdo num estúpido acidente de caça, algo de bastante irónico para quem passava a vida a arriscar o pescoço em batalhas atrás de batalhas.
A maneira desembestada como castigava todos os inimigos que lhe vinham parar à mão, sujeitando-os a torturas bárbaras e a mortes indignas, contribuiu decisivamente para o cancioneiro lusitano, a despeito de os seus camaradas de guerra o considerarem tão desinteressado na sua própria figura que nem fazia questão de ser um militar digno de respeito. Sobre o animal, as rimas e as cançonetas, espalharam-se de norte a sul: «Entre os títeres generais/entrou um génio altivo/que ou era o Diabo vivo/ou tinha os mesmos sinais…» E outra, ia assim: «Aos alheios cabedais/lançava-se como seta/namorava branca ou preta/toda a idade lhe convinha/consigo três Emes tinha:Manhoso, Mau e Maneta./Que generais é que devem/morrer ao som da trombeta?/Os três meninos da ordem:/Junot, Laborde e Maneta». Ficamos, pelo menos, a saber que não era racista em relação ao sexo feminino, se é que tal lhe acrescenta alguma pequena dose de humanidade.
Louis Henri pode ter dado cabo do canastro a muitos compatriotas nossos, mas a verdade é que Portugal foi um nome que lhe ficou entalado na garganta. Tinha acabado de tomar Almeida quando ficou a saber que Junot chegara à beira Tejo para ver passar os navios que levavam a família real para o Brasil. A marcha para sul fora devastadora. Na capital portuguesa era do domínio público que os 26 mil franceses que tinham entrado em Portugal estavam reduzidos a 10 mil por via da fome, do cansaço e das escaramuças._Quando a bandeira da França tomou o lugar da portuguesa no alto da torre do Castelo de São Jorge, o povo de Lisboa, farto de ser pilhado, espancado e posto fora de suas casas para que os franceses passassem a viver nelas, acumulava um ódio valente ao invasor.
Um ano se passou e, a miséria a que Portugal estava reduzido (que só contribuía para que os membros dos exércitos napoleónicos sentissem que estavam a ser submetidos a um sacrifício inútil mantendo-se tão longe da pátria) somada à queda de Carlos V em Espanha, à qual se seguiu a Guerra da Independência, também conhecida por_Guerra do Francês, alterou por completo a correlação de forças em litígio. O Maneta mantivera-se pelo norte. Fora enviado de emergência para pôr fim a uma revolta que rebentara em Ciudad Rodrigo e teve ordens para seguir para o Porto com dois mil soldados às suas ordens. Aí sofreu uma derrota dolorosa. Junot mandou-o apresentar-se em Lisboa. Não estava em estado de graça. Perdera 200 homens.
Um homem odiado
Na véspera da sua tentativa de invadir o Porto, a notícia correu célere por entre os soldados portugueses: «O Maneta tinha sido apanhado!». Engano._Não fora Loison; fora o general Maximilien Sébastien Foy. E Foy, atirado de um lado pela populaça que estava disposta a, por assim dizer, mandá-lo para o_Maneta, teve a presença de espírito para erguer ambos os braços, provando assim que não lhe faltava nenhum dos membros superiores e pondo fim à confusão.
Aceitemos, no entanto, as coisas como elas foram: Henri Louis, segundo tudo indicam os documentos e testemunhos que andam por aí, e aos quais qualquer comum mortal tem acesso, era um autêntico cavalo com arções em termos, vá lá, morais, mas um militar competente com uma carreira que teve o seu quê de brilhante (com os normais falhanços de todos nós) e somou promoções mais depressa do que todos os seus camaradas de carreira em bem menos tempo do que eles. Dir-me-ão que isso, para quem os médicos, no momento da autópsia, são incapazes de descobrir no cadáver exposto um escrúpulo que seja, é a ordem natural das coisas, e eu aqui estou para aceitar a vossa opinião mas incapaz de manchar o percurso profissional de O_Maneta com algo mais do que a sua quase patológica tendência para a pilhagem. Quero é escrever as suas desgraças em terras lusitanas e vamos a isso que se faz tarde.
Chegado a Lisboa, depois de ter feito trinta por uma linha na Guarda, deitando fogo a tudo o que fosse combustível, Loison recebeu outra missão por parte de Junot: avançar sobre Elvas à frente de um contingente de 7.000 homens para pôr um ponto final na rebaldaria rebelde de portugueses e espanhóis, agora unidos. Saiu da capital no dia 25 de Julho de 1808 e a marcha durou três dias. Do outro lado depararam com uma tropa meio fandanga de 2.900 soldados mal-amanhados, apoiados por populares, e comandados pelo general português Francisco Leite de Sousa e pelo coronel espanhol Moretti, chefe de um batalhão de hussardos chamado Maria Luísa.
Perante um tão débil oposição, O Maneta foi ele próprio. Dispersou as forças inimigas, tomou a cidade, e tratou de despachar civis a torto e a direito, deixando mais de dois mil mortos espalhados pelas ruas. Sem resistir aos seus instintos mais básicos, permitiu que os seus soldados roubassem tudo o que pudessem antes de tomar a rota de Beja para festejar mais uma vitória. Subitamente, foi de novo chamado a Lisboa onde os franceses tinham entrado em pânico graças ao desembarque de Arthur Wellesley na Figueira da Foz. Vinham aí os ingleses e eram muitos!
A Convenção de Sintra
O Maneta foi um dos generais da Batalha do Vimeiro. Entregaram-lhe as brigadas Solignac e Charlot num total 4.410 baionetas. Não se pode dizer que tenha tido grande responsabilidade no caos táctico em que os franceses se embrulharam, ainda por cima defrontando um exército superior em número. A derrota, inevitável, obrigou à retirada das forças de Napoleão e à assinatura por parte de Junot da Convenção de Sintra, dois dias depois, documento que pôs fim à primeira Invasão Francesa e tratou de embarcar os soldados de França de regresso a casa.
Quanto a Loison, manteve-se por mais uns tempos sob as ordens de Junot até ser transferido para os exércitos de Jean-de-Dieu Soult, o homem ao qual Bonaparte atribuiu a responsabilidade da tentativa da segunda invasão peninsular. Toda a gente sabe como o fracasso se repetiu. Mas, desta vez, Louis Henri levou com as culpas. O historiador David Gates considerou-o pessoalmente responsável pela derrota bruta de Amarante, no dia 12 de Maio de 1809 («La résolution de Loison de quitter le pont d’Amarante était inexplicable car le général maître du pont ne pouvait rencontrer aucun obstacle sérieux»), depois de ter conquistado uma posição de vantagem muito razoável no terreno. A Batalha de Amarante provocaria nova derrota dos franceses do Porto.
Napoleão era teimoso como um burro. Um burro corso. Loison caíra-lhe no goto nessa altura e deu-lhe o título de Conde do Império e uma renda anual de 25 mil francos. Para compensar, no dia 24 de Julho de 1810, O Maneta estava outra vez em Portugal e outra vez em Almeida onde os franceses obtiveram uma vitória significativa sobre as tropas do general britânico Robert Crauford. Mas Henri Louis estava condenado à maldição lusitana. Desta vez sob o comando de André Masséna, a quem os franceses tratavam imponentemente por O Filho Querido da Vitória, voltou a conhecer a angústia na Batalha do Buçaco, onde fez o que pôde antes de ver o marquês de Wellington manobrar com perícia sua gente na retirada estratégica que levou Napoleão a perder-se de vez nas Linhas de Torres, abandonando as suas pretensões a mandar naquele país que, como escreveu Ruy Belo, o mar não quer. Ainda assim, sobreviveu, retorcendo-se. Aproveito a fúria de Masséna em relação ao general Ney e tornou-se comandante do 6º corpo dos exércitos imperiais, não tardando a entrar em liça em Fuentes de Oñoro, já que Portugal dava demasiadas chatices.
A sua vida militar terminou na Campanha da Rússia de 1812, com a missão muito pouco prestigiante de caminhar na frente de Napoleão de forma a assegurar a sua retirada em segurança. O Imperador estava zangado com todos os seus subordinados. Não gostava de perder e gostava de encontrar culpados. Aproveitou para mandar prender O Maneta mais uma vez. Morreu dois anos depois. Com 45 anos. Ninguém guardou dele boas memórias.