Trocou a engenharia pelo jornalismo devido a essa capacidade mágica de se colocar no lugar dos outros, sorrir rasgadamente, olhar nos olhos as pessoas e falar com toda a gente.
António Ribeiro Ferreira tinha um coração gigante. A sua razão estava ligada a ele.
Levava os afectos até ao fim e não cultivava as meias tintas nas suas opiniões.
Depois de ter sido esquerdista na juventude, mantinha-se um homem frontalmente de direita, mas igualmente radical e apaixonado na forma de expressar as suas opiniões.
Na história das suas opções mandava sempre o coração. Foi a participação nas operações de resgate nas cheias dos anos 60 – revelando o sofrimento das populações e a inépcia assassina do governo fascista – que o transformaram num militante político que viveu intensamente a luta contra o regime, a queda da ditadura e os anos quentes da revolução. Foi também a morte e perda do pai que contribuíram para alterar a sua posição política, já na ressaca da revolução.
Era um homem muito inteligente, mas para quem o coração e os sentimentos estavam em primeiro lugar.
Percebia como ninguém que as pessoas, independentemente das suas opiniões políticas, eram aquilo que interessava na vida. Gostava de as perceber e conseguir seduzir.
Trocou a engenharia pelo jornalismo devido a essa capacidade mágica de se colocar no lugar dos outros, sorrir rasgadamente, olhar nos olhos as pessoas e falar com toda a gente.
Sempre que a redacção do i mudava de lugar, o António era o primeiro a meter conversa com as pessoas do bairro, e a encontrar os pequenos comércios, cafés e tascas com as pessoas mais interessantes. Rapidamente, entrava no coração dessas pessoas e ouvia as suas histórias.
ARF era um grande contador de histórias que tinha uma enorme curiosidade sobre as vidas e as opiniões dos outros.
Antes de trabalhar com ele, nada me aproximava de ARF. Conhecia os seus textos, que achava provocadores e irritantes, para mim era um “facho”. Já o tinha visto fisicamente, quando das poucas vezes que fui ao Snob. Ele parecia estar sempre lá, no lugar principal na primeira sala deste bar, em tempos, muito frequentado por jornalistas, enchendo as conversas com a sua voz irónica, muitas vezes irada.
Trabalhar com o António Ribeiro Ferreira foi uma revelação. Era um jornalista dos sete costados, sabia do ofício das redacções. O primeiro a entrar e o último a sair. Discutia colectivamente o que se ia fazer, ajudava no fecho e na edição e se fosse preciso despachava as breves. Nada do que estava num jornal lhe era estranho.
Mas mais do que essa competência, que já tinha visto em muitos jornalistas de tarimba – daqueles que diz a lenda que começaram a carreira a relatar a chegada dos barcos e os piquetes de polícia –, aquilo que me fascinava nele era a sua imensa fraternidade para com quem trabalhava ao seu lado e o respeito intransigente com a liberdade dos outros.
Como o António, eu acredito que os bons jornalistas são cidadãos de corpo inteiro, feitos de opiniões e pecados vários. O bom jornalismo é produzido por eles, conseguindo transcender defeitos, numa busca, nunca acabada, para entender as pessoas e a vida de quem nos cruzamos nas notícias.
O bom jornalismo não é feito por gente castrada, mas por pessoas que assumem opiniões, que muitas vezes podem estar erradas. Os jornalistas procuram a verdade, com os seus valores e ideias, respeitando os métodos do jornalismo e sendo intelectualmente honestos.
O António Ribeiro Ferreira assumia as suas ideias e defendia que os seus jornalistas escrevessem aquilo que pensavam, mesmo que ele não estivesse de acordo. Isso via-se em todas as pequenas coisas. As discussões, com ele, podiam ser, como nas redacções a sério, em voz alta, até aos berros, e apaixonadas, mas o ARF respeitava todas as opiniões daqueles que não se calavam e argumentavam contra a sua opinião.
Uma vez, numa coluna de opinião, comentei o facto de uma cadeia de supermercados ter feito um estudo sobre os seus trabalhadores que roubavam no local de trabalho, devido a fortes carências económicas, e proposto um plano de empréstimos para minorar o problema. Critiquei a solução patronal, dizendo que se pagassem salários decentes aos trabalhadores, nada disso se passaria. O artigo teve dezenas de milhares de partilhas, tendo enfurecido os patrões desta empresa que pressionaram a administração do jornal. Esta informou o António que mandou os patrões passear. Nunca soube nada do que se tinha passado pelo Ribeiro Ferreira. Só anos mais tarde, outra pessoa me contou o sucedido.
A defesa dos seus jornalistas era um ponto de honra, contra tudo e contra todos, por parte do António Ribeiro Ferreira.
Ele só não perdoava a falta de coragem.
Espero, com este artigo, não estar a ‘foder’ o fecho do jornal, o pecadilho que o António mais embirrava nos jornalistas.