«Ignorar a realidade não faz com que ela desapareça».
Philip K. Dick
1.«Estamos a sufocar entre pessoas que pensam ter sempre a razão toda», disse Albert Camus. É o que começam a sentir cada vez mais os homens livres, que cada vez parecem menos, neste ambiente em cada dia mais irrespirável. Repare-se que na AR, que deve ser de homens livres comprometidos com os interesses reais dos concelhos e dos cidadãos que devem representar, não se aplaude o acerto das intervenções dos adversários políticos que o mereçam, nem se critica com argumentos o que de colegas de partido e adversários exija reprovação. Ignora-se a mensagem, invetiva-se ou aplaude-se o mensageiro. Cumprindo as ordens da direção do partido, que ofereceu o emprego, afogando as consciências e ignorando a realidade. Submissamente.
As redes sociais são um teatro de sombras onde o debate é frequentemente substituído por invetivas: em vez de ouvir e debater – com argumentos, claro -, caça-se. Alguns pagos para isso, dizem-me, mas suponho que não seria preciso. Mesmo para além do Twitter ou Facebook, o campo intelectual e político tornou-se um campo de batalha onde todos os golpes são permitidos. Por todo o lado, pregadores ferozes preferem despertar o ódio em vez de iluminar as mentes.
Releiam-se, como propõe Jean Birnbaum* em Le courage de la Nuance, os textos de intelectuais e escritores que nunca se contentaram em opor ideologia a ideologia, slogans a slogans. Albert Camus, George Orwell, Hannah Arendt, Raymond Aron, Georges Bernanos, Germaine Tillion ou Roland Barthes. Não se trata apenas de encontrar refúgio junto da sua atitude exemplar, mas acima de tudo redescobrir a esperança no burburinho ensurdecedor da desrazão e do ódio, proclamar que não há nada mais radical e libertador do que afirmar a diferença.
2. Escrevi sobre Ventura, e a ascensão meteórica do partido que fundou, para compreender um fenómeno que exige atenção e entendimento, e não silêncio e ilusão da realidade. E logo dos confins mais odiosos da estupidez, da intolerância e da abominação – só explicáveis à luz do contributo freudiano – chegou a voz da censura de quem quis ligar-me ao Chega.
Do mesmo modo, quando quis contribuir para se conhecer a Rússia, entender os russos, a História e o comportamento suicida de Putin na Ucrânia e o enfrentar, logo surgiu quem me fez apoiante do ‘czar’, quiçá do PCP.
Gente a quem assombram os que não dizem sobre a realidade o que eles querem que ela seja.
Não reduzirei a guerra na Ucrânia à indignação que a invasão me inspira. Não abdicarei de pensar.
3. E comecei a recear que a intolerância e o ódio sem freio me autolimitassem na escolha dos temas e na liberdade de os tratar. Lembrei-me do tempo salazarista em que um deslize na escrita da simples contracapa de um livro levava à sua apreensão. Tempos inesquecíveis na Europa-América, em que aprendi com o maior e o primeiro editor moderno português, Francisco Lyon de Castro; em que treinei a inteligência e aprendi a arte difícil de escrever as badanas e contracapas e os anúncios dos livros insubmissos que editávamos.
Agora, pensei em deixar de escrever. Depois adoptei a solução do pseudónimo – que logo senti violar a minha natureza. Volto por isso a colocar o meu nome no que escrevo, a viver a alegria fecunda de dizer claramente o que penso. A ser eu próprio.
*Jean Birnbaum dirige Le Monde des livres. É autor de vários ensaios, nomeadamente Un Silence Religieux, La Gauche Face au Djihadisme (2016, Prix Aujourd’hui) e La Religion des Faibles. Ce que le djihadisme dit de nous (2018, Prix Montaigne, editado recentemente pela Gradiva, sem que quase ninguém o tenha lido…).