Por João Cerqueira
O grupo de vinte e seis neonazis reunia-se todas as noites às vinte horas no centro de Tiersk para iniciar a caça ao que considerava serem inimigos da Eslávia, parasitas, raças inferiores e degenerados. Era composto por jovens com idades entre os dezoito e os trinta anos. Havia estudantes, empregados da construção civil, electricistas, enfermeiros, taxistas, comerciantes, seguranças privados e desempregados. Praticavam artes marciais, boxe e musculação em ginásios. Treinavam técnicas de luta na rua. Usavam o cabelo rapado, tatuagens com a cruz suástica e caveiras, vestiam roupas negras e calçavam botas do exército. Andavam armados com bastões, soqueiras, correntes e navalhas. Como havia poucos negros e a maioria dos judeus eram ricos e estavam protegidos, as suas vítimas eram emigrantes da Albânia e da Roménia, ciganos, vagabundos, homossexuais, alcoólicos e drogados. Contudo, caso não encontrassem nenhuma destas pessoas, qualquer cidadão com que se cruzassem poderia tornar-se o alvo dos seus espancamentos. Tendo começado a patrulhar as ruas há dois meses, já tinham agredido mais de setenta pessoas, tendo duas delas acabado por morrer. Os candidatos a entrar no grupo, além de interrogatórios, eram sujeitos a uma prova que consistia em espancar, sozinhos, uma vítima designada. A violência do ataque e a impiedade eram fundamentais para serem aceites. Hesitar implicava a rejeição e uma sova. A polícia conhecia-os, mas não os incomodava por considerar que eles ajudavam a limpar as ruas e a intimidar os bandidos. Eram, portanto, uma espécie de aliados.
Nessa noite um dos neonazis chamado Jan tinha trazido um candidato a entrar no grupo que iria ser posto à prova. Jan era o único neonazi que tinha lido o Mein Kampf de Hitler e sabia algo sobre a história da Europa, a Segunda Guerra Mundial e as democracias ocidentais. Empregado num talho, Jan concluíra o liceu, frequentava a biblioteca pública e comprava livros sobre política e história nos alfarrabistas de rua. Os restantes neonazis tinham vagas ideias sobre esses assuntos que, em verdade, os aborreciam, mais interessados na violência do que na ideologia. Havendo pois uma espécie de estatutos onde os murros e os pontapés estavam acima do conhecimento, Jan, apesar de razoável lutador, nunca conseguira ter influência sobre os seus camaradas. Chamavam-lhe, depreciativamente, o intelectual. Todavia, ninguém duvidava de que ele era o mais capacitado para fazer o recrutamento de novos neonazis pois antes de os submeter ao teste final preparava-os minuciosamente. Nos últimos seis meses apresentara três candidatos e só um fora rejeitado por não ter conseguido derrotar numa luta de rua um emigrante romeno que o esfaqueara num braço.
O novo candidato era um rapaz de vinte anos chamado Stefan, loiro de olhos azuis, com o corpo musculado pela prática de boxe e full contact. Jan frequentava a mesma academia de luta e ficara impressionado com a potência dos golpes de Stefan e a ferocidade com enfrentava os adversários – o treinador impedira-o várias vezes de causar lesões graves aos colegas. Um dia convidara-o para treinar com ele e, depois de um combate de onde saíram os dois a sangrar, levara-o a beber umas cervejas. Iniciou-se assim o processo de recrutamento. Jan fez perguntas e ficou a saber o que lhe interessava: Stefan morava com a mãe e nunca conhecera o pai; Stefan tinha deixado de estudar e vivia de expedientes como ser segurança de bares e entrar em lutas clandestinas; Stefan não tinha namorada nem verdadeiros amigos; Stefan sabia pouco sobre política, história ou cultura geral. Jan compreendeu então que sob a armadura do guerreiro coriáceo se escondia uma criança insegura que podia ser facilmente manipulada. Primeiro, elogiou-lhe a força, a coragem, a técnica de luta e até o desenho dos bíceps – e Stefan sorria, ávido de reconhecimento. Depois disse-lhe que acreditava que ele viria a ser um lutador profissional capaz de combater no estrangeiro – Stefan desatou a dar socos no ar. E só ao fim de meia hora de conversa e quatro cervejas é que começou com a doutrinação política. Sabia Stefan que o país estava a ser roubado pelos judeus, pelos emigrantes e por uma escumalha que não trabalhava mas recebia apoios do estado? – Stefan, claro, nunca tinha pensado nisso.
Sabia Stefan que os habitantes da Eslávia eram uma raça superior que estava ser corrompida por causa das misturas com outros povos inferiores? – Stefan tão pouco sabia disso. Sabia Stefan que dentro de algumas gerações o país poderia estar totalmente dominado por estrangeiros? – Stefan voltou a abanar a cabeça. Era, pois, necessário fazer alguma coisa – Stefan concordou. Uma vez que os políticos eram corruptos, era necessário serem os cidadãos a lutar pela sua pátria – Stefan voltou a concordar. Era necessário purificar a Eslávia e esse combate começava nas ruas – Stefan começou a sorrir, eis algo que ele entendia. Queria ele juntar-se a um grupo de valentes que andava a defender a pátria? Tinha ele coragem para enfrentar a canalha dos judeus, dos emigrantes, dos paneleiros e dos drogados? Tinha ele vontade de partir dentes e cabeças? Sim, sim, podiam contar ele – disse Stefan – podiam contar com ele para começar a dar porrada nesses filhos da puta.
Jan não precisou de espreitar mais para o buraco que abrira em Stefan: à superfície havia ódio, revolta e ignorância suficientes para fazer dele um cão de ataque.