Em 2018, os telespetadores ficaram fascinados e, ao mesmo tempo intrigados, por Joe Goldberg – personagem principal da série da plataforma de streaming Netflix, You –, um charmoso e simpático gerente de uma livraria de Nova Iorque que, ao mesmo tempo, se revela um serial killer depois de se apaixonar por uma cliente, Guinevere Beck, e rapidamente desenvolve uma obsessão “extrema, tóxica e delirante”. O sucesso da série foi tão grande que o público “implorou” para que a história não acabasse na primeira temporada. E os seus realizadores Greg Berlanti e Sera Gamble fizeram-lhe a vontade, lançando uma segunda no ano seguinte, ainda mais desconcertante, já que a obsessão do jovem o leva a cometer crimes ainda mais hediondos do que na primeira parte da série, desta vez com Love Quinn como sua vítima. Em 2020, uma terceira temporada foi para o ar. Em dezembro do ano anterior, a Netflix divulgou uma série de listas oficiais, incluindo os programas de televisão mais famosos de 2019. You estava entre as mais vistas dos EUA, onde ficou em quinto lugar entre as séries. De acordo com o resumo de fim de ano da Nielsen, a série de suspense estava ainda no grupo das dez séries originais mais assistidas nos EUA entre dezembro de 2019 e dezembro de 2020, onde ficou em décimo “com base em minutos assistidos”.
Antes disso, muitos foram os filmes realizados em torno de stalkers. O que são? “O termo stalker refere-se ao comportamento de vigiar e perseguir outra pessoa, forçando, em alguns casos, o encontro com essa pessoa e estando associado muitas vezes à obsessão”, explica ao i a psicóloga Catarina Lucas, acrescentando que “não é uma patologia tipificada com critérios específicos, já que os comportamentos de perseguição podem ser de vários tipos”.
Mas porque será que este tipo de histórias fascinam tanto o público? Será por terem conhecimento de que este tipo de casos saltam frequentemente dos ecrãs para a realidade? A verdade é que muitos artistas enfrentam este problema diariamente. É normal que se fantasie com as celebridades preferidas, imaginando um possível relacionamento ou apenas uma boa amizade. No entanto, algumas pessoas levam a situação a um nível extremo – de quase terror – colocando a integridade física dos famosos e das suas famílias em risco. O caso mais recente é o do empresário e ex-futebolista inglês, David Beckham, que há alguns meses vive, em conjunto com a sua família, um verdadeiro pesadelo devido ao “assédio” de Sharon Bell, uma mulher de 58 anos que vive obcecada por ele.
“Nestes casos está associado à idealização que fazemos da pessoa, ao desejo de se ser próximo quando estas celebridades são inatingíveis para a maioria das pessoas. Isto alimenta o imaginário, o idílico e, no limite, a obsessão. O mesmo acontece com relações amorosas terminadas: aquilo que não podemos ter pode tornar-se uma obsessão e levar a comportamentos de perseguição”, sublinha a especialista.
A stalker de Backham
Sharon Bell afirma que David e Victoria, sua esposa, “roubaram os seus óvulos para conceber a filha mais nova do casal”, que tem 10 anos, Harper, e reivindica o seu direito à maternidade. O jogador avançou já com uma ação judicial no tribunal de Westminster, “sentindo que a obsessão dessa mulher está a colocar em risco a segurança da sua família”.
Em setembro a mulher apareceu na escola da filha de Beckham alegando ser a sua mãe e, por isso, tendo o direito de ir buscá-la. A presença de Sharon Bell coincidiu com a da própria Victoria Beckham, que não hesitou em chamar a polícia e pedir ajuda à escola, que protegeu a mãe e a filha dentro do centro enquanto esperavam que as autoridades dissuadissem a mulher. Em declarações à BBC, o famoso advogado da família garantiu que “Harper Beckham é filha biológica de Victoria”.
E, na semana passada, Sharon Bell foi detida ao abrigo da Lei de Saúde Mental do país. O juiz distrital Michael Snow concluiu que esta é um risco para Harper, Brooklyn, Romeo e Cruz porque é obcecada pela família. Não é de todo o primeiro caso e em Portugal é conhecido o pesadelo de António Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF, perseguido desde 2003, no que viria a ser o primeiro caso de stalking julgado em Portugal.
Segundo Catarina Lucas, uma obsessão é um pensamento “intrusivo” e “recorrente”, por norma “irracional” e que provoca “sofrimento” ou “ansiedade”. “A implementação de determinados comportamentos, rituais ou verificações tende a atenuar a ansiedade que estes pensamentos provocam”, explica a psicóloga, reforçando que estes comportamentos “são mais comuns no caso de figuras públicas e ex-companheiros/as amorosos/as”. “Tendem a ocorrer comportamentos como perseguição, esperas à porta de casa ou do trabalho, telefonemas e mensagens, vigilância e perseguição nas redes sociais, abordagem a familiares e/ou conhecidos, entre outros”, conta.
As cartas intimidatórias
Voltando ao caso de Beckham, a mulher foi acusada de assediar o ex-jogador do Manchester United e da Inglaterra, com uma série de cartas. De acordo com o Daily Mail, esta tentava contactá-lo desde 2016, acreditando que mantinha um relacionamento com o seu ídolo. Bell enviou uma carta para a casa de Beckham, em Oxfordshire, a 5 de julho do ano passado, onde dizia que planeava aparecer na propriedade dias depois: “Consegui o teu endereço através de uma agência de detetives, espero que não te importes! Tenho sentimentos por ti, David”, escreveu a stalker. “A Victoria deve-me algum dinheiro, David, está a roubar a minha conta bancária há anos. Agradecia que não o fizesse mais”, continuava.
A mulher chegou mesmo a deslocar-se à propriedade no dia 9 de julho, mas acabou por abandonar o local depois de um segurança lhe ter dito que aquele não seria o endereço certo. De acordo com o jornal britânico outra carta foi enviada para a casa dos Beckham, em Holland Park, antes de Bell voltar a aparecer no dia 9 de setembro. “Por favor, aparece (…) Se eu escrever para ti primeiro e perceberes que eu estou desarmada, posso entrar para conversar e tomar um chá? Earl Gray é meu chá favorito. Eu quero realmente conversar contigo. Por favor, posso entrar para conversarmos?”, insistiu Bell, garantindo que o empresário “lhe devia isso”. Além disso, a mulher fez referência a Tom Cruise, dizendo que, como seu amigo, este a tinha “chateado muito”, fazendo-lhe “coisas terríveis”. Numa terceira carta enviada em outubro, Bell voltou a declarar-se: “Eu amo-te desde que éramos crianças!”, escreveu.
No entanto, em tribunal, Beckham garantiu que nunca conheceu Bell e admitiu que se sentia extremamente preocupado com o comportamento da mulher, que, segundo o mesmo, começou a tornar-se “errático” e “imprevisível’’: “Senti que a linguagem das cartas se transformou numa coisa emocional e ao mesmo tempo ameaçadora para mim e para a minha família e isso preocupa-me”, lamentou num comunicado lido ao Tribunal de Magistrados de Westminster e sublinhando que “obviamente que Bell sabia onde este morava”. “Ela apareceu sem aviso, tornando a ameaça mais direcionada e intimidadora. Senti-me impotente e com raiva porque não havia nada que eu pudesse fazer”, lembrou ainda. Já Victoria Beckham reforçou o perigo que corre Harper: “Tentei protegê-la e estou preocupada com a segurança dela. Fico preocupada e ansiosa por ir ao parque ou ser levada em excursões escolares”, admitiu.
Na cabeça dos stalkers
Catarina Lucas sublinha que há uma diferença entre intimidação e perseguição: “A intimidação diz respeito às ameaças, chantagem ou comportamentos violentos e agressivos por parte do stalker. A perseguição refere-se ao ato de vigiar (presencialmente ou online) o outro ou até persegui-lo. Contudo, na perseguição não têm que estar obrigatoriamente presentes os comportamentos intimidatórios mais explícitos”.
Questionada sobre se essas pessoas têm conhecimento de que estão a ter um comportamento assustador, Catarina Lucas explica que, “em alguns casos, os stalkers têm perceção de que o seu comportamento é exagerado e até desajustado, no entanto, não conseguem parar, já que este comportamento se assemelha a uma obsessão”.
Noutros casos, as pessoas podem perder a noção do seu próprio comportamento, acreditando não estar a fazer nada de errado. “Não existe uma noção quanto ao exagero e disfuncionalidade do seu comportamento, podendo nestes casos as consequências ser mais elevadas”, alerta.
A psicóloga acrescenta que, “por norma, estas situações provocam medo, angústia e ansiedade, sobretudo se não se souber quem é o executor desses comportamentos”.
“O desconhecido é um grande gerador de medo e ansiedade”, continua. “Como muitas vezes, não existe uma intimidação mas sim uma perseguição, o papel da justiça também é reduzido, o que deixa as vítimas desprotegidas. A tendência nestes casos é o isolamento, o evitamento de situações ou locais onde se imagine que se possa encontrar a pessoa, a mudança de número de telefone e eliminação de redes sociais”, afirma, alertando que o medo e ansiedade “são grandes geradores de trauma”.
“Por isso, estas situações, se arrastadas no tempo e tiverem presentes a intimidação e/ou agressão, podem deixar mazelas e interferir no dia-a-dia da pessoa. A pessoa pode desenvolver fobias e um comportamento de maior isolamento, condicionando a forma como se relaciona com os demais. Toda a situação que ameaça a nossa integridade e liberdade é seguramente um motivo para marcas profundas”, conclui Catarina Lucas.
No caso de Beckham, a mulher pode vir a ser declarada inimputável devido a um distúrbio psicológico. Está no entanto interdita de entrar em contacto com os Beckham ou os seus quatro filhos pelo resto das suas vidas. “Este é um daqueles casos raros em que uma ordem indefinida é necessária para proteger os membros da família Beckham de danos físicos ou psicológicos graves causados por Bell”, explicou o juiz.