A Sala Laugardal, em Reykjavik, capital da Islândia, estava em completo silêncio. E, no entanto, lá dentro, acumulavam-se 2500 pessoas. Estava calor em Reykjavik e era o dia 2 de Julho de 1972. O calor dilata os corpos e as gargantas, apesar de secas, têm tendência para proferir palavras e as palavras quebram o silêncio, primeiro num tom baixo e misturado, quase como um zumbido de vespas, depois sonoras e espaçadas para que se façam entender.
Sobre um estrado, a conveniente distância do público, encontravam-se duas cadeiras aparentemente confortáveis e, no meio delas, uma valiosa mesa de carvalho com quadrados de mármore incrustados e trinta e quatro magníficas peças de xadrez da marca Staunton.
É magnífico perceber que um jogo de xadrez quando se inicia tem apenas trinta casas livres, não é?
Em Julho de 1972, faz agora 50 anos, vivia-se um dos momentos mais ferozes da Guerra Fria, essa batalha psicológica entre americanos e russos pela supremacia militar do mundo. Reduzi-la ao que se iria passar na Sala Laugardal entre o russo Boris Vasilievich Spassky e o americano Robert james Fischer podia ter laivos de ridículo, mas foi exatamente isso que se passou.
Às 17h locais, Spassky, nascido em Laningrado (a velha Sampetersburgo) no dia 30 de Janeiro de 1937, defendendo o título mundial, deveria ter iniciado o jogo perante o desconcertante pretendente Bobby Fischer, natural de Chicago, onde nasceu no dia 9 de Março de 1943. Bobby gostava de provocar, de ser visto e comentado. «Derrotarei todos os grandes mestres europeus e serei melhor do que Emmanuel Lasker que foi campeão do mundo durante 27 anos!». Quem lia as suas frases murmurava: «fanfarrão…».
À medida que o tempo foi passando, o calor na Sala Laugardal tornou-se suficiente maçador para que ninguém se sentisse verdadeiramente confortável nos seus lugares apertados. O barulho das conversas subiu na escala dos decibéis.
Havia gente irritada.
Bobby Fischer não apareceu.
Ainda nem sequer se dera ao trabalho de voar até Reykjavik. Continuava nos Estados Unidos.
Nunca até aí alguém fora capaz de desprezar tão descaradamente o início de um campeonato do mundo.
Os organizadores não sabiam o que fazer.
O árbitro Lothar Schmidt e o presidente da Federação Internacional de Xadrez (FIDE), o ex-campeão mundial, o holandês Max Euwe, reuniram-se de emergência. Fixou-se um novo prazo para a partida inaugural: 4 de Julho. Se Fisher não estivesse presente pelo meio-dia seria desclassificado.
Pairavam, por entre as páginas dos jornais, todas as teorias. A principal indicava que Bobby Fischer estava descontente com o prémio monetário atribuído. Um milionário inglês entrou de imediato em ação e ofereceu 50 mil Libras a cada um dos contendores.
Seria o suficiente para aliciar Bobby?
A verdade é que no dia 4 de Julho, pelas 7 horas da manhã, Fischer desembarcou em Reykjavik do avião que o transportara desde os Estados Unidos. Membros da organização conduziram-no de imediato aos seus aposentos e fizeram os impossíveis para o manter à distância da ferocidade ávida da comunicação social.
A irritação de Boris
Spassky estava profundamente irritado. E com razão, convenhamos. Afirmou publicamente que, ao quebrar as regras estabelecidas, Fischer o tinha ofendido pessoalmente.
A opinião pública e a imprensa soviética apoiava incondicionalmente o campeão do mundo. Exigia uma reparação e um castigo para o jogador americano. Pelo caminho, o grande-mestre Lombardy, amigo do Bobby, e o seu advogado Paul Marshall, procuravam encontrar uma solução amigável para o conflito.
Dia 6 de Julho, já depois de Euwe ter vindo reconhecer que a conduta do americano tinha sido condenável, Spassky recebeu uma carta de Bobby com um pedido de desculpas. A certa altura dizia: «Caro Boris, aceite por favor as minhas sinceras desculpas pela minha conduta irrespeitosa ao não comparecer na cerimónia de abertura. Deixei-me simplesmente arrastar pela minha pequena guerra com os organizadores islandeses por causa de dinheiro. Ofendi-o pessoalmente, e ao seu país, a União Soviética, país no qual o xadrez ocupa um lugar tão preponderante. (…) Sei que se trata de um desportista e de um cavalheiro e sinto-me especialmente feliz por poder disputar consigo partidas que serão seguramente interessantes. Do seu afectuosíssimo Bobby Fischer!».
Quem conhecia Bobby viu nesta carta o dedo de Paul Marshall. Não era decididamente o estilo do campeão americano. Mas para o que era, servia às mil maravilhas.
A organização decidiu que o sorteio iria ter lugar às oito da noite. Bobby chegou com quarenta e cinco minutos de atraso.
No primeiro jogo caber-lhe-ia jogar com as pretas. O dia ficou definido: 11 de Julho. A Sala Laugardal voltou a encher-se, agora com reinspirada excitação. Fischer mostrou-se inquieto e distraído. Mas, enfim, cada vitória num dos jogos do torneio valia ao vencedor algo como dez mil dólares. Ao 56º lance, desistiu. Todos os observadores estavam de acordo que estava em claríssima desvantagem desde início. A derrota adivinhava-se logo após as primeiras jogadas. O campeão do mundo tomava avanço.
O desaparecimento de Bobby
A segunda partida ficou marcada para o dia 13 de Julho. Fischer fez-se esperar inutilmente. Pura e simplesmente não pôs lá os pés. O árbitro esperou pacientemente durante uma hora, o tempo estabelecido para se poder declarar a desistência do faltoso. Spassky não disfarçava o aborrecimento. E, no entanto, já tinha a agradável vantagem de dois pontos em dois jogos.
As pessoas estão estupefactas. Não sabem em que pensar.
Ter-se-á Fischer dado ao trabalho de viajar até Reykjavik para não comparecer a um único jogo? Estava tão desequilibrado psicologicamente como muitos comentadores afirmavam?
No dia seguinte, numa carta enviada à organização, volta a elencar uma série de queixas: reclama do excessivo movimento da sala, dos fotógrafos que nunca estão parados, das câmaras da televisão que se inclinam demasiado sobre ele.
Afirma que não tem condições para jogar pelo título e que, se querem que continue, era necessário mudar o palco dos jogos para um pequeno quarto anexo à Sala Laugardal, retirar por completo o público e os fotógrafos e estabilizar as câmaras a uma distância suficientemente razoável. Sem isso, nada feito. Estava pronto para regressar a casa.
Spassky é consultado. Os organizadores reúnem-se com Schmidt e com Golmbeck, que entretanto substituíra Euwe em funções.
A confissão
Numa entrevista concedida na altura ao New York Times, Bobby surpreendia muita gente com a forma aberta como expôs a sua personalidade: «Os meninos, como eu, que nunca tiveram pai, são como lobos. Lutam sempre. Robert James Fischer (que falava de si próprio na terceira pessoa muitas vezes) é um homem extraordinário. O seu mundo é o tabuleiro de xadrez e nas suas jogadas tem de haver movimento e, ao mesmo tempo, arte. Quem não consegue perceber isto é digno de pena. Aos 15 anos, Fischer era campeão dos Estados Unidos; aos 28 é o melhor jogador do mundo e aos 29 será oficialmente campeão mundial!».
Não tinha, definitivamente, um miligrama de modéstia. O mundo a seus pés!
O campeonato recomeçou sob as exigências do americano mas Ludek Pachaman, que escreveu o maravilho The Match of The Century, a história do combate de Reykjavik entre Fischer e Spassky, sempre recusou a teoria de que o primeiro tirara vantagem a partir do momento em que aceitaram as suas exigências. Nervos sobrecarregados conduzem, por vezes, a comportamentos extremos, reconheceu. Mas também assumiu que a Sala Laugardal estava mais preparada para receber um concerto ou um peça de teatro do que uma série de jogos que iriam esgotar a paciência dos dois competidores.
O título decidia-se à melhor de 24 jogos e Spassky adquirira aqueles dois jogos iniciais de vantagem o que deixava Bobby em maus lençóis. Apesar de tudo, no dia 22 de Julho, no final da sexta partida, já o americano passara para a frente por 3 1/2 – 2 1/2 (a vitória valia um ponto e o empate meio). Daí até ao final, no dia 31 de Agosto, Fischer trepou decididamente até ao ponto mais alto do xadrez de todos os tempos. Segundo Pachman: «O seu estilo é inovador e ofensivo e os seus ataques são sempre bem fundamentados. A defesa consegue um contra-jogo muito efectivo».
Bobby Fischer tornou-se campeão mundial à 21ª partida. Desde o tal dia 22 de Julho vencera mais quatro, perdera mais uma e empatando as restantes. Foi como se um furacão tivesse passado em Reyjkavik, seguido apaixonadamente por gente dos quatro cantos do planeta, muitas delas pela primeira vez agarradas aos ecrãs de televisão através dos quais analistas e grandes mestres iam explicando ao pormenor, com a ajuda de tabuleiros, as virtudes e os erros dos dois competidores. No dia em que foi oficialmente empossado como vencedor do título, perguntou alto para todos e também para si mesmo: «O que vai Robert James Fischer fazer agora?». Ninguém soube responder. E bem depressa se percebeu que ele próprio também não fazia ideia.
Não restam dúvidas que entrou definitivamente na galeria dos grandes dos grandes, dos mitos eternos, onde figuram personagens inimitáveis como Alekhine, que anunciava os xeque-mates com mais de vinte lances de antecedência, precisando de, para isso, calcular centenas e centenas de milhares de probabilidades, ou o espantoso dândi cubano, Raúl Capablanca, diplomata de profissão que viajava pela Europa reduzindo o xadrez à simples abstração de ser capaz de jogar (e ganhar!) mais de vinte partidas simultâneas de olhos vendados. Se pensarmos no gigantismo deste exercício cerebral podemos imaginar dois jogadores com a mesma capacidade a disputarem mais de vinte partidas ao mesmo tempo sem necessitarem de tabuleiros.
Mas Bobby foi Bobby. Depois desse quente Verão de Reijkjavik recusou-se a voltar a qualquer outra partida oficial. Perdeu o título para Valery Karpov por falta de comparência e caiu numa soturna demência na qual a sua vida era atormentada por uma conspiração soviética decidida a destruir-lhe as capacidades cerebrais. Filiou-se numa seita religiosa, fugiu para o Japão, continuou a considerar-se campeão do mundo pela simples razão de que ninguém conseguira vencê-lo depois da epopeia de Reykjavik. Garry Kasparov, mais tarde campeão do mundo, escreveu sobre ele: «Bobby Fischer ficou preso no jogo. Perdeu-se mentalmente dentro dele, perdeu-se nas profundezas do tabuleiro e nunca mais conseguiu recuperar o caminho do regresso».
Spassky e Fisher voltaram a encontrar-se. Há 20 anos. No dia 4 de Setembro de 1992. Numa cidadezinha nos arredores de Belgrado para uma campanha de sensibilização pelas vítimas da guerra na Sérvia. Ou por dinheiro, mais propriamente, se nos recordarmos da figura gorda e barbuda que surgiu como se se tivesse acabado de desembaraçar de um albergue de sem-abrigos. Bobby voltou a ganhar. Continuava a jogar como se a sua vida dependesse disso. E a fazer dançar sobre as 64 casas todas as peças numa dança completamente selvagem. «Ninguém poderá, alguma vez, obrigar-me a jogar de uma forma que eu não queira. Eu gosto de jogar até ficar só com o meu rei em cima do tabuleiro. Tudo por tudo!».
Robert James Fisher, o Lobo Solitário, pôs o mundo a discutir em redor de um tabuleiro e os mestres a estudar furiosamente os seus movimentos imprevisíveis. Mesmo preso por entre os quadrados, causava medo. Causava sempre medo.