Joe Biden, que proclama alto e bom som querer transformar a política externa americana num «eixo de democracias» contra o autoritarismo de Pequim e Moscovo, sentou-se à mesa com o governante absoluto da Arábia Saudita, que deteve dezenas dos seus próprios familiares e que mandou esquartejar um colunista do Washington Post, Jamal Khashoggi, concluiu a própria CIA.
E, ainda assim, o Presidente americano parece ter voltado da sua visita a Jeddah de mãos a abanar, sem nenhuma promessa pública de um aumento da produção de petróleo. Mesmo tendo dado ao príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman, exatamente o que este desejava, o encontro de que precisava para se legitimar como o grande aliado de Washington na região, sendo fotografado batendo punhos com um Presidente americano que apelidara a Arábia Saudita de Estado «pária» durante a sua campanha presidencial.
Biden fez questão de frisar que visitara a Arábia Saudita, antes de seguir para Israel, de maneira a incentivar o seu Governo a respeitar os direitos humanos, não para pedir ajuda para enfrentar o aumento dos preços dos combustíveis nos Estados Unidos – algo que contribui para a histórica impopularidade do Presidente, que esta semana bateu no fundo nas sondagens, tendo a aprovação de somente 36% dos americanos, estando ainda pior do que o seu antecessor, Donald Trump, alguma vez esteve durante o seu conturbado mandato.
O Presidente dos EUA assegurou que falou do homicídio de Khashoggi com Bin Salman. Talvez não tenha surtido grande efeito, dado que o príncipe herdeiro se limitou a responder que Washington «fez os seus próprios erros», avançou o jornal saudita Al Arabiya, tendo Bin Salman lembrando a tortura de prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib, em 2003, ou a morte da repórter americana Shireen Abbu Akleh, da Al Jazeera, em maio, às mãos das forças de segurança de Israel, um dos mais próximos aliados dos EUA.
É difícil imaginar que Bin Salman subitamente, impulsionado pelos gentis apelos de Biden, decida mudar de rumo. Afinal, falamos de um líder absoluto descrito pelo antigo nº2 das suas secretas, Saad Aljabri, como um monstro. «Estou aqui para soar o alarme quanto a um psicopata, um assassino no Médio Oriente com recursos infinitos», descreveu Aljabri em entrevista à CBS, saindo momentaneamene do esconderijo onde sabiamente se enfiou, após fugir do reino saudita, dias antes da visita de Biden. Bin Salman, recorrentemente comparado com os filhos de Saddam Hussein, conhecidos por massacrarem e até violarem com impunidade, «não tem empatia, não sente emoção, nunca o aprendeu pela sua experiência», apontou o antigo nº 2 das secretas sauditas. «E testemunhámos atrocidades e crimes cometidos por este assassino».
Já em Washington, erguiam-se vozes furiosas com a visita de Biden a Bin Salman, inclusive dentro do seu próprio partido. Lembrando que o reino saudita é governado por «uma família que vale cem mil milhões de dólares, que esmaga a democracia, que trata mulheres como cidadãos de terceira classe, que assassina e prende os seus adversários», declarou o senador Bernie Sanders, que foi o grande adversário de Biden nas primárias a candidato presidencial democrata e é o rosto da ala esquerda do partido.
«Não creio que devamos manter uma relação amistosa com uma ditadura assim», salientou, em entrevista à ABC, sugerindo que a melhor maneira de enfrentar o aumento do preço dos combustíveis não é cortejar o regime saudita. «Temos de dizer às companhias petrolíferas que parem de extorquir o povo americano», explicou, recordando que estes gigantes têm tido lucros recordes com o aumento do preço do barril, enquanto a vasta maioria dos americanos empobrece. «E se não o fizerem, vamos impor impostos sobre eles», continuou Sanders.
Não é só a ala esquerda dos democratas que está insatisfeita com Biden e com o seu bate-punho casual com Bin Salman. «Se alguma vez precisámos de uma lembrança visual do continuado controlo que autocratas ricos devido ao petróleo têm sobre a política externa americana no Médio Oriente, tivemo-lo hoje», comentou no Twitter o congressista Adam Schiff, alinhado com a ala centrista democrata.
Até famílias de vítimas do 11 de Setembro se insurgiram contra a visita do Presidente dos Estados Unidos à Arábia Saudita, frisando o papel central deste Estado no atentado. Ainda o ano passado a revelação de documentos internos mostrou que o FBI suspeitava que príncipes sauditas tinham dado apoio aos terroristas que levaram a cabo o ataque – algo abafado pela Administração de George W. Bush, bem como pelos seus sucessores, decididos a proteger as suas relações com este reino tão rico em petróleo – e desde então associações de familiares das vítimas têm avançado com processos judiciais para responsabilizar o Estado saudita.
A revelação dos documentos do FBI mostra «a importância de não recompensar o reino e o príncipe herdeiro como uma visita presidencial, que lhe permite continuar a escapar à responsabilização pelo mais horrível ataque», apelou uma destas associações, citada pelo The Hill.
Já Biden tentou defender a contradição de ter chamado «pária» à Arábia Saudita há menos de dois anos e agora, coincidentemente quando mais precisa de petróleo, lhes aparecer à porta. «Há tantos assuntos em cima da mesa e eu quero deixar claro que podemos continuar a liderar na região e não criar um vácuo», justificou o Presidente americano.
«Um vácuo que pode ser preenchido pela China ou a Rússia, contra os interesses de Israel e dos Estados Unidos». De facto, pensa-se que entre os temas que Biden tentava puxar com a sua visita incluíam-se negociações secretas, reveladas recentemente pelo Wall Street Journal, para uma parceria de segurança entre Israel e países árabes inimigos do Irão, incluindo a Arábia Saudita, de maneira a criar uma frente comum.
Durante os seus encontros com dirigentes sauditas, o Presidente americano tentou puxá-los para o seu lado no que toca à guerra da Ucrânia, avançou a Associated Press, recorrendo a imagens da satélite que mostravam oficiais russos a inspecionarem drones iranianos na perspetiva de os comprar. É certamente um tema sensível para o reino de Bin Salman, contra o qual drones iranianos têm sido utilizados por uma milícia xiita, os houthis, que os sauditas têm enfrentado durante a sua intervenção militar no Iémen, que contribuiu para uma fome brutal neste país, considerada uma das piores, senão a pior, tragédia humanitária do séc. XXI.
No entanto, nem a Arábia Saudita ou os seus aliados mais próximos, os Emirados Árabes Unidos (EAU) se mostraram dispostos a virar-se contra o regime de Vladimir Putin, que têm ajudado a escapar às sanções. Aliás, nos últimos meses os EAU até se tornaram uma espécie de santuários para oligarcas russos e os seus enormes iates.