Memórias reais e imaginárias

Com ou sem cartão, o importante é construir boas memórias, vivê-las mais no presente do que no futuro e de preferência sem filtros nem encenações.

Um dia destes, já enervada com o telemóvel, que nunca tem espaço para nada, apaguei por engano todas as fotografias e vídeos do cartão de memória. Quando me apercebi nem queria acreditar: a graduação do karaté de um dos meus filhos, a do jiu-jitsu de outro, o aniversário de um dos mais novos, as festas das escolas e vários outros momentos especiais de repente desapareceram por completo. Pelo menos da minha memória auxiliar. Estes registos que temos como seguros tornam-se tão importantes que quando os apagamos sem querer ficamos aflitos como se os perdêssemos para sempre, da mesma forma que nos sentimos dececionados se subirmos ao topo de uma montanha e dermos pela falta da máquina fotográfica.

Nos tempos que correm é como se a nossa memória não bastasse e algumas pessoas necessitassem elas próprias de um cartão de memória, onde vão deixando gravados os momentos mais importantes da vida e o crescimento dos filhos. Se as crianças de hoje virem um dia todos os filmes e imagens que os pais fizeram delas, vão ter um retrato quase fiel do seu desenvolvimento. ‘Quase’ porque a vida faz-se de vivências, de afetos, de trocas e de experiências. Das nossas memórias e das dos outros, das histórias que nos contam, daquilo que imaginamos e construímos a partir do que temos. O que seria de mim se a ideia que guardo da minha infância se reduzisse ao pequeno álbum de fotografias dividido com a minha irmã que havia em casa dos meus pais e que revi com curiosidade vezes sem conta quando era pequena…

 

Antes dos telemóveis, as fotografias eram muito mais escassas. No meu grupo de amigos tive a sorte de a Raquel e o João adorarem fotografia e eternizarem várias férias e momentos que passámos juntos. Tenho a certeza de que todos nos lembramos de muitos deles pelo simples facto de estarem registados em imagem.

 

Mais tarde, quando já havia telemóveis mas ainda sem câmara, comprei uma pequena Leica que era a minha companheira de bolso. Era perfeita porque era muito portátil e tinha ótima definição. À semelhança do que aconteceu recentemente, preguei uma partida a mim mesma: deixei-a no avião no regresso da lua-de-mel, juntamente com os cartões de memória onde estava registada a nossa viagem de sonho. A viagem será sempre, ainda assim, naturalmente inesquecível, a diferença é que as memórias são mais distantes e longínquas, vieram comigo mas são de lá, onde foram vividas. Não podem ser partilhadas além das descrições e não vieram naquele bocadinho de plástico, prontas para serem revistas à exaustão. Têm a vantagem de poderem ser o que quisermos, de se transformarem com o tempo, de se moldarem ao nosso desejo e imaginação.

 

Com ou sem cartão, o importante é construir boas memórias, vivê-las mais no presente do que no futuro e de preferência sem filtros nem encenações.