Por Virgílio Machado, Professor adjunto UALG e Autor de Portugal Geopolítico
Cantava a saudosa fadista Amália Rodrigues numa Casa Portuguesa (1953) que ‘Fica bem pão e vinho sobre a mesa’ […]. ‘A alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente’ [..]. Uvas doiradas, caldo verde verdinho, sol da primavera e um cheirinho a alecrim compõem também a ementa.
A hospitalidade e a simbologia religiosa do pão e do vinho associada ao corpo e sangue de Cristo não desmentem. A Casa Portuguesa foi mais uma manifestação de propaganda, ou seja, promotora da diferenciação cultural e política de Portugal face ao exterior, a par de outras expressões promovidas pelo Estado Novo, como o cinema e a arte popular.
A candura, a substância e singeleza da culinária regional eram os valores promovidos da gastronomia os quais, a par da sua diversidade, fundamentaram até hoje pilares da motivação turística externa e sua satisfação. A gastronomia é apontada como ativo qualificador do Plano Estratégico Nacional de Turismo 2017-2027.
Que conteúdos renovados pode a geopolítica aportar à gastronomia portuguesa? Para um maior sucesso desta enquanto recurso nacional? Eis um desafio. A resposta possível é, pela gastronomia enquanto expressão cultural, aproximar o mundo, fazê-lo convergir e dar-lhe maior capacidade de comunicação. Expressemos exemplos.
A geopolítica do peixe ligada aos oceanos aproxima. Pois o bacalhau está mais capturado a Norte e a sardinha a Sul. Os dois pratos de peixe mais populares em Portugal. O bacalhau com mil receitas. Estes pescados têm rotas de itinerância e movimento distintas que deviam ser explicados em restauração turística, assim como práticas de sustentabilidade. Os vinhos, por sua vez, são sedentários e qualificados em regiões demarcadas.
A ligação vinho/peixe é fecunda, pois permite, de todo, a complementaridade entre litoral e interior, entre o movimento do peixe, a sua conservação pelo sal e a transição compreendida para a extração da uva e seu processamento em vinho. O Império Romano de que fizemos parte e que explorou estes conteúdos pode ser explicado neste enquadramento geopolítico que projeta Portugal como expressão singular.
De igual forma, o saber popular soube desenvolver conteúdos de complementaridade entre terra e mar, como pratos de carne e moluscos, de que a carne de porco com ameijoas é manifestação ou, mais recentemente, cataplanas ou espetadas de carne e mariscos. Todos têm um conteúdo geopolítico relevante, ou seja, de associação próxima entre litoral marítimo e interior rural. Poucas unidades geopolíticas exprimem esta variedade e riqueza.
A geopolítica da navegação marítima portuguesa que aproximou o mundo é outro legado riquíssimo. A explicação histórica das tripas à moda do Porto, desde o século XIV exprime privações e desafios. Mas mais relevante é a transição, a ponte que Portugal soube fazer na sua gastronomia entre a persistência proteica de carne, leite e ovos, própria de povos do Norte da Europa com forte tolerância à lactose com outros produtos mais populares a Sul e mais fibrosos como o pão, alguns frutos secos, como nozes e amêndoas e anti-inflamatórios, como o mel, a canela e a pimenta, estas vindas da India, num desafio permanente de gestão da escassez.
A geografia política plástica de Portugal com romanos, visigodos e árabes na sua constituição e que se reforçou nos Descobrimentos com produtos vindos do Oriente e do Brasil como especiarias, café, chá e açúcar, batatas, milho, entre outros, só veio dar consistência a uma riqueza gastronómica de combinação impar de Portugal na Europa e no mundo.
Por último e não menos importante, o saber acumulado de pequenas comunidades, de conventos e mosteiros de Norte a Sul fundiram -se na doçaria. O pudim à abade de Priscos, as barrigas de freira e os papos de anjo são uma explosão requintada de combinações entre o leite, o ovo e o açúcar, de que o pastel de nata é o exemplar mais popular e representativo.
Nada tenho contra os chefs internacionalmente reconhecidos ou as estrelas Michelin na promoção da nossa gastronomia. Todavia, não retirem à geopolítica o que lhe pertence, ou seja, de ser um elemento constituinte fundamental da gastronomia, um ativo distintivo e qualificador nacional e turístico valioso de Portugal e representativo para o mundo. A nossa história, geografia e cultura merecem-no. Bom proveito!