Passa pouco das 10 da manhã, e o café-bar Miradouro, no Jardim de São Pedro de Alcântara, prepara-se para mais uma enchente de turistas, que encontram em Lisboa uma alternativa aos preços exorbitantes de outras capitais europeias.
Franceses, ingleses, alemães, espanhóis, brasileiros, indianos, a que se juntam outras nacionalidades mais dificilmente identificáveis: aqui no icónico jardim alfacinha ouve-se falar todas as línguas, das mais familiares às irreconhecíveis. E até há habitués estrangeiros que visitam Lisboa com frequência e não prescindem de vir aqui tomar a sua bica. Alguns clientes chegam diretamente do Aeroporto Humberto Delgado, ainda com as malas, para começarem o seu dia com um pequeno-almoço com vista sobre a cidade.
Marlene Silva, gerente do Miradouro, que conversa com o i à medida que vai abrindo as portas do negócio, revela que há dias em que mal fala português, tal é a afluência de visitantes oriundos de outros países.
Para os que aqui residem ou trabalham, a ideia de que o turismo veio “estragar” a identidade da capital não faz sentido. Ter visitantes é precisamente parte desta identidade, sublinha Marlene.
Um pouco mais abaixo, seguindo o cheiro a maresia que origina no não muito longínquo Tejo, começa a notar-se a presença da população portuguesa, com certeza. Os turistas são os ‘senhores’ das ruas, ninguém o nega, mas “basta entrar ali no Bairro [Alto] que já encontra os residentes”. Numa tabacaria, a clientela nacional entra atraída pelo tabaco e o jogo – entenda-se as ‘raspadinhas’ e o Euromilhões. Mas são cada vez menos os portugueses que ali moram, observa a funcionária atrás do balcão, seja porque não conseguem pagar as rendas cada vez mais altas, seja porque, devido à idade avançada, vão morrendo. “Mas ainda há muito português por aí!”, garante.
camões dos tuk tuks Do Jardim de São Pedro de Alcântara descemos até à Praça Luís de Camões, outro ex libris da capital lisboeta.
Por volta do meio-dia, esta praça que à noite se enche de foliões é um ponto de encontro para grupos de visitas guiadas. Em simultâneo, há sempre entre três e cinco grupos de turistas que ouvem atentamente os seus guias explicar, de forma mais ou menos romanceada, os segredos e os mistérios que Lisboa guarda, desde o Terramoto de 1755 ao incêndio do Chiado. À ‘espreita’ estão os famosos Tuk Tuks, o meio de transporte popularizado na Tailândia que rapidamente traçou o seu caminho até às capitais europeias e conquistou o primeiro lugar na lista de veículos aptos para o transporte de turistas nos centros históricos. Com um olho nos visitantes e outro na polícia, já que no local não é permitido o estacionamento de Tuk Tuks, um dos condutores desdobra-se em diferentes línguas à procura de possíveis clientes. Assim que vê o grupo em visita guiada deslocar-se, redobra os esforços para convencer os turistas: “Viagem de Tuk Tuk? Viaje? Tuk Tuk Ride?”.
No topo da lista das nacionalidades que costuma transportar estão os ingleses e os franceses. Portugueses? Apesar de não se ouvirem tanto pelas ruas, “também os há”, mas “são mais difíceis”. Além de serem menos, “já conhecem tudo, então é mais difícil fazer uma viagem que seja ainda assim interessante”.
lisboa da beleza Chegando ao Cais do Sodré, e ainda sob um intenso sol, os cafés e os bares já transbordam de visitantes estrangeiros, mas os responsáveis ainda não cantam ‘vitória’. “Roma não se fez num dia”, ironiza o empregado de um destes estabelecimentos. Embora o regresso do turismo este ano esteja a ser positivo, ainda não é o suficiente para colmatar os estragos provocados pela pandemia.
Na Pink Street – nome mais ‘sexy’ para a Rua Cor de Rosa -, que durante o dia se mantém deserta, vislumbra-se, mais uma vez, um outro grupo de turistas que seguem atentos uma guia que vai falando de diferentes factos da cidade. Dá-se uma particularidade: os visitantes – a maioria deles neerlandeses – não fazem o passeio a pé, mas sim em bicicleta. Tal qual o pelotão da Volta a França, seguem num grupo de dez, rua abaixo, ouvindo a informação que a sua dedicada guia vai debitando, equilibrados sobre as bicicletas.
À beira-rio, o ambiente mantém-se alegre e festivo. Ao som de diferentes tipos de música, oriundos de diferentes colunas portáteis, lado a lado com as espreguiçadeiras que esperam ansiosamente os traseiros dos turistas cansados, e seguindo uma fila de trotinetes elétricas que parece interminável, Patricia, de Hamburgo, na Alemanha, e a sua mãe, descansam enquanto esperam o resto do grupo que as acompanha para seguir o seu passeio na capital.
“Já tinha vindo há cinco anos, mas agora tive um casamento de uns amigos em Torres Novas e aproveitei e trouxe a minha mãe”, revela a turista alemã ao i. Veio atrás dos “azulejos” e das paisagens de Lisboa, que já a tinham “apaixonado” em 2017. Belém, confessa-nos, é a sua zona favorita, até pela variedade de restaurantes e bares com o Tejo por perto.
As redes sociais e a troca de impressões entre amigos foram os impulsionadores da viagem até à capital portuguesa, que serve, principalmente, para “descansar, apanhar sol e comer”.
Sobre o facto de as ruas da cidade terem sido tomadas por turistas, Patricia não se mostra de modo algum dececionada. Considera “normal que numa cidade grande, que atrai visitantes, seja o que mais se vê nas ruas”. “Ouvi francês, espanhol, neerlandês… é normal porque é uma cidade internacional e agora, depois da pandemia da covid-19, toda a gente quer viajar”.
do arco ao rossio Bastam cerca de dez minutos para fazer o trajeto entre o Arco da Rua Augusta e à Praça do Rossio, que dá uma boa imagem do que é o turismo em Lisboa: as lojas são ou de grandes cadeias ou de souvenirs. A maioria delas são exploradas por estrangeiros – e as que têm portugueses ao balcão têm pouca vontade de falar com jornalistas.
Em cada esquina vê-se uma família ou um casal a comprar ímanes, camisolas ou tote bags para levar como recordação da capital portuguesa. O espaço na parte central da artéria foi dividido entre as esplanadas que convidam a tomar uma bebida refrescante e comer um petisco, e os artistas de rua, que dão colorido ao ambiente, com danças, música ou o humor, baseado principalmente na interação com quem por ali passa.
Comerciantes falam em inglês… com portugueses No Rossio, as floristas vão fazendo arranjos para as suas montras. Alexandra, que está à frente da pequena loja onde já a sua avó e a sua mãe vendiam flores, diz que, havendo mais ou menos turismo, quem realmente beneficia com o ‘boom’ é a indústria hoteleira. “Nas flores é um bocadinho difícil. Só se for um aniversário ou um casal apaixonado. Olhe, o que me mantém cá é a vida”, desabafa.
“Eu vivo na Amadora, e quando venho cá baixo parece que entro noutro país”, confessa. Recentemente, depois de ter passado um longo período em casa, longe do Rossio, “já sentia muitas saudades”. “Eu venho de comboio e assim que desço ali da estação de comboios [do Rossio] já estou noutra dimensão. Atenção, o Rossio toda a vida teve turismo”, continua. “Mas como agora não”.
Traídos pelo ‘hábito’ de abordar os clientes em inglês – tal é a frequência com que atendem turistas -, muitas vezes os lojistas acabam por falar nessa língua com os clientes portugueses que entram nos seus estabelecimentos. “Há pessoas que parecem estrangeiras e os comerciantes caem no erro de falar em inglês. As pessoas não gostam…”, graceja.
“Venda ou não venda, isto é a minha vida”, resume. Mas Alexandra também conhece o sabor mais amargo do fenómeno do turismo. “Fui obrigada a sair porque, em 1986, já morar em Lisboa era um luxo, e hoje, de qualquer buraco fazem um alojamento. Já era insuportável, mas agora ainda mais, há imensas pessoas que estão a ser afetadas a nível de habitação”. A florista foi uma delas.