por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora
Já se nota e não é para admirar; o contrário é que espantaria.
Em 2012 escrevi um ensaio sobre a inviabilidade de uma federação europeia, um projecto totalmente irrealista mas que por esse tempo ainda convocava o entusiasmo de muito boa gente. A UE consiste numa associação ou pacto entre Estados-nações muito antigos e que em domínios essenciais não abrem mão da sua soberania. Este nacionalismo é particularmente visível no plano da política externa e da Defesa, onde continua a valer a regra do ‘cada um por si’. Cada Estado tem as suas opções e prioridades geoestratégicas, infelizmente demasiadas vezes contraditórias entre si. Há uns anos, a UE resolveu nomear um ministro para os negócios estrangeiros, sem dúvida porque se apercebeu de que a falta de unidade nesta matéria era um factor de fraqueza. Sem surpresa, ninguém deu pela existência deste ministro, de tal modo o nacionalismo dos Estados europeus esvaziava as suas supostas funções. Cite-se, a mero título de muitos exemplos possíveis, o caso em que se tratava de não mais do que condenar Nicolás Maduro, Presidente da Venezuela que atropelava, e continua a atropelar, os mais elementares princípios de um Estado Democrático, sujeitando a sua população, para se manter no poder, à fome, à falta de medicamentos e a uma inflacção estratosférica.
Quanto à Defesa, o caso talvez seja ainda mais grave. A Europa prescindiu de se armar, anichando-se sob o guarda-chuva da NATO, financiada pelos Estados Unidos. A grande maioria dos países recusou-se a alocar 2% do seu PIB ao armamento. Portugal é apenas um exemplo desta parasitagem. Enquanto a paz reinava, a Europa, com a maior parte dos seus recursos absorvidos pelo Estado Social, foi amolecendo confortavelmente à sombra da protecção americana. Não existindo uma política externa comum, é lógico que também não pode haver uma Defesa comum. Qual é o preço a pagar por estas duas falhas maiores? É a nula importância que a Europa tem hoje em dia no mundo: a União Europeia não é uma potência.
Foi portanto uma surpresa ver a Europa reagir a uma só voz à invasão da Ucrânia pela Rússia. Os países da UE conseguiram a proeza de chegar a acordo sobre sete pacotes de sanções contra a Rússia. Destaque-se o papel da Alemanha, que desde o início foi uma propulsora decisiva da unanimidade europeia. Esta unanimidade está ameaçada. A Europa já dá sinais de cansaço.
Em primeiro lugar pela existência, na Europa, de correntes políticas que, tanto à esquerda como à direita, passaram de apoiantes discretos de Putin a apoiantes vocais. O caso mais gritante será o da Itália, onde a queda de Mario Draghi abriu caminho para a chegada ao poder de partidos abertamente putinistas. Marine Le Pen, em França, espreita a sua oportunidade de retribuir o auxílio russo que recebeu nas eleições francesas. E quem leia a imprensa portuguesa ou outra notará que o putinismo conta com inúmeros apoiantes por toda a parte, à esquerda e à direita. Esta circunstância favorece o ambiente em que se consumará a desunião europeia.
Ela já se desenrola sob os nossos olhos a propósito da proposta de redução do consumo de gás em 15%. Portugal e a Espanha declararam-se logo contra, com o argumento de que não dependem do gás russo. Mas a questão fundamental não está neste argumento utilitário. Está na solidariedade que devemos à Ucrânia. A solidariedade, pelos vistos, só chega até onde o nosso confortozinho não é prejudicado. Aliás, outros países já rejeitaram o sacrifício. Ora eu creio que a solidariedade deve ser substantiva, ainda nos casos em que a atitude apenas tenha um valor simbólico.
Não sou ingénua e não creio que a Ucrânia, mesmo com toda a ajuda da NATO e da Grã-Bretanha – que agiu independentemente – possa derrotar a Rússia. Mas gostaria, quando desgastadas as partes em conflito, que David não se encontrasse à discrição da brutalidade russa de Golias.