Por Luis Mira Amaral, Engenheiro Electroténico (IST) e Economista (Msc NOVASBE)
Mesmo antes da chocante invasão da Ucrânia, já se sentia no mundo uma crise energética, aquilo a que temos chamado a primeira crise energética em contexto de descarbonização. Tal devia-se a um forte crescimento da procura por combustíveis fósseis, designadamente petróleo, carvão e gás natural (GN), na sequência da retoma económica pós-covid mas em nome da descarbonização a União Europeia e os EUA tinham travado novos investimentos e novas produções de combustíveis fósseis, criando uma tremenda pressão da procura sobre a oferta que tinha dificuldade em acomodar essa procura, levando ao disparo dos preços da energia nos mercados mundiais. Quis-se acabar com os combustíveis fósseis e a energia nuclear, como na Alemanha, na esperança de que as energias renováveis intermitentes as substituíssem, o que se revelou totalmente utópico! Segundo o ‘Statistical Review of World Energy’ da BP, o consumo mundial de energia primária aumentou em 2021 5.8 % em relação a 2020, atingindo mesmo um nível mais elevado do que se tinha verificado em 2019 antes da pandemia, sendo até o nível mais elevado de sempre. As energias fósseis representaram mais de 82% do consumo de energia primária e mais de 61 % da produção de electricidade no mundo. A invasão da Ucrânia veio tornar evidente aos olhos do grande público tudo isto, exacerbando essa crise energética e isto é particularmente visível no GN, dada a grande e trágica dependência da Alemanha do GN russo fornecido pelo gasoduto Nord Stream 1!
Em Portugal, estamos a ter a tempestade quase perfeita. A seca extrema tem restringido a capacidade de produção hidroeléctrica e fechámos prematura e temerariamente as centrais a carvão pelo que no sistema eléctrico, estamos muito dependentes do GN e das elevadas importações de electricidade de Espanha, levando a preços extremamente elevados da electricidade para as empresas e para a industria portuguesa. Quando importamos electricidade de Espanha de origem térmica é o Estado espanhol a arrecadar as receitas dos custos de emissão do CO2, enquanto que se a produzíssemos em Portugal essas receitas ficariam no Estado português. Na lógica do mercado grossista do Mercado Ibérico da Electricidade (MIBEL), que é um mercado marginalista, a última central a entrar em rede (central marginal) para fechar o equilíbrio entre procura e oferta dita o preço do mercado nesse instante e nos sistemas com muita renovável intermitente, têm sido cada vez mais as centrais eléctricas a GN a fazê-lo. Por outras palavras, estas centrais servem de pronto-socorro às renováveis intermitentes quando não há sol ou vento. Assim sendo, é fácil de perceber que o estratosférico preço do GN levou a elevadíssimos preços da electricidade nas horas em que as centrais de GN actuam como centrais marginais e fixam o preço da electricidade.
O Governo português, em consonância com o espanhol dado estarmos no mesmo MIBEL, para tentar limitar o elevadíssimo preço da electricidade produzida a partir do GN e que fixa nalgumas horas, como explicado, o preço da electricidade no mercado, estabeleceu então o Decreto-Lei nº 33/2022 de 14 de Maio, que criou um mecanismo de plafonamento do preço do GN para a produção de electricidade, fazendo recair sobre os consumidores beneficiários da medida, aqueles que estão sujeitos às variações dos preços da eletricidade no mercado grossista, o pagamento da diferença entre o preço de mercado do GN e o preço do GN limitado no inicio a €40/Mwh por este DL. Chamamos Custo do Ajustamento a esse diferencial.
Assim sendo, são os próprios consumidores teoricamente beneficiários da medida a suportarem o Custo do Ajustamento, pelo que o benefício líquido para estes consumidores será apenas a diferença entre o preço no mercado grossista da eletricidade sem plafonamento e a soma entre o preço efectivo no mercado grossista com plafonamento e esse Custo do Ajustamento. Será então essencial que a ERSE, como regulador independente do Governo por nós criada na qualidade de ministro da Indústria e Energia em 1995, e como entidade tecnicamente credível, possa simular e calcular quais seriam efectivamente os preços da electricidade no mercado grossista sem o plafonamento dessa intervenção governamental e assim possamos comparar esse valor com a referida soma entre o preço actual no mercado grossista (sujeito a plafonamento) e esse Custo de Ajustamento pago pelos consumidores. Sem isso, estamos apenas sujeitos aos tweets governamentais…
Pelo DL estão excluídos os consumidores que têm contratos a preço fixo de compra da electricidade, e que portanto não têm preços indexados aos preço do mercado grossista, o que acontece com a generalidade dos consumidores domésticos portugueses. Estes só saberão de possíveis aumentos aquando da renovação dos contratos. Já os consumidores industriais, abrangidos por esta medida, e que na nota da ERSE representarão entre 18% a 29% de todos os consumidores, estarão sujeitos às flutuações de preços no mercado grossista, e o que se espera é que com o plafonamento os aumentos sejam inferiores àqueles que haveria sem plafonamento.
O plafonamento introduzido ocasiona três limitações no preço do mercado grossista (à vista), a priori benéficas para os consumidores: (1) a formula tabela o preço de venda da electricidade produzida pelas centrais a GN, impedindo que os produtores façam markup no preço oferecido; (2) como o mercado é marginalista, as tecnologias em mercado (hídricas, nuclear e algumas renováveis intermitentes que estejam em mercado) e que não são térmicas fósseis (carvão e gás) capturam menos receita no mercado por ficarem plafonadas ao preço intervencionado da central marginal, o que configura limitação dos famosos windfall profits que essas tecnologias têm por receberem pelo preço da central marginal térmica, no qual estão incluídos os custos de emissão do CO2, mas depois não terem de pagar esses custos. O truque que beneficia os consumidores é simples: todos os MWh produzidos em mercado sofrem no preço a redução imposta pelo plafonamento da central marginal, mas os consumidores só pagam o Custo de Ajustamento aos MWh produzidos pelas centrais marginais e não à totalidade da produção!; (3) as tecnologias que marcam o preço no mercado por substituição de térmicas fósseis, raciocínio do custo evitado, como é o caso das hídroeléctricas de albufeira, estão naturalmente limitadas nesse valor pelo plafonamento.
Mas o constante aumento do preço do gás, aumentando muito o Custo do Ajustamento, pode quase escamotear a vantagem do plafonamento! Um exemplo simples ajuda a explicar isto: (1) no princípio de Junho, antes do plafonamento, o GN andava à volta de uns 75€/MWh térmico. Usando um rendimento termodinâmico das centrais de 55% (o estipulado no DL) e 80€/t de CO2 (e fator de emissão 0,4 t/MWh), daria um custo variável de 75/0,55+0,4×80 €/MWh= 168€/M Wh para a produção de electricidade via GN (na primeira semana de Junho a média aritmética foi de 193€/MWh, o que pode ser justificado por custos adicionais em relação a esses custos variáveis quer do pára-arranca dessas centrais a funcionarem como pronto socorro no apoio à intermitência das renováveis quer de mark up, para cobertura parcial de custos fixos).
Se tivesse já havido plafonamento, o custo variável de produção de electricidade a partir do GN e o preço de venda tabelado seria 40/0.55+ 0.4×80€/MW h=105€/MWh mas (75-40)/0.55 €/M Wh=64 €/MWh seria a compensação adicional que cada térmica a GN receberia e que iria contribuir para os tais Custos de Ajustamento; (2) no fim de Junho já com o plafonamento do preço do GN e com um preço do mesmo no mercado à volta de 116 €/MWh térmico, teríamos o tal custo variável de produção de electricidade e o correspondente preço de venda tabelado de 40/0.55+0.4×80 €/MWh =105€/MWh, mas a compensação que se tem de pagar ao produtor térmico a GN dispara para (116-40)/0.55 €/MW h=138€MWh. Supondo que este é o valor da compensação para uma dada hora, o Custo total do Ajustamento horário será 138€/MWh x volume total em MWh de produção tabelada e recebendo essa compensação, e será esse valor que terá de ser pago por cada consumidor alvo da medida na proporção do seu consumo nessa hora. Alguns contratos de preço fixo poderão vir a ser forçados a passar a preços indexados ao mercado grossista no fim da sua vigência, aumentando o número de consumidores a pagar esta compensação e diminuindo o valor para os que já pagam…