Querida avó,
Partiu aquela que gostava de ser conhecida como a “Guardiã da cozinha tradicional portuguesa”.
Com 92 anos foi, sem dúvida, uma mulher muito à frente do seu tempo, que deixou uma marca profunda nas nossas tradições.
Adorava estar com ela! Cada vez que nos encontrávamos, ficávamos à conversa imenso tempo. O seu conhecimento e a forma apaixonada como falava deixavam-me rendido. Com as suas histórias, Maria de Lourdes Modesto levava-me numa viagem às memórias gastronómicas de Portugal.
Inevitavelmente encontrávamo-nos na Feira do Livro, cruzámo-nos imensas vezes no El Corte Inglês e almoçámos algumas vezes no Nobre, o restaurante da Justa Nobre.
Ela sabia do meu gosto em ouvir os mais velhos, para depois contar as suas histórias, então falava-me do sucesso que foram os seus programas, que estiveram no ar mais de 12 anos, e de quando se estreou, com a televisão ainda a preto e branco.
A sua forma de comunicar tornava-a numa amiga que nos entrava pela casa dentro para nos ensinar a comer bem.
Atrevo-me a dizer que o livro da Cozinha Tradicional Portuguesa é o livro mais bem feito até hoje. É como uma Bíblia ou um Dicionário para muitas famílias e para muitos chefs hoje reconhecidos.
A forma apaixonante com que me contava estas e outras histórias, faz-me acreditar que Maria de Lourdes Modesto era alguém que, para além dos sabores, gostava de partilhar as emoções e a paixão pela culinária.
Não é isto que fica gravado nas memórias dos netos que adoram os cozinhados das avós?
Sabias que ela tratava o José Avillez por neto e ele a tratava por avó?
A fusão entre a cozinha contemporânea e a tradicional.
Num dos nossos almoços vi-a, deliciada, a comer uma bela fatia de pão alentejano e umas azeitonas pretas. Olhou para mim e disse-me: «Nada como as memórias de infância do Alentejo».
É na simplicidade que vemos o requinte!
Bjs
Querido neto,
Penso que nunca perdi um programa da Maria de Lourdes Modesto – num tempo em que ainda não se podia gravar o programa e depois puxá-lo para trás… Ou se estava naquela hora diante do televisor, ou nada feito.
Acho que houve dois grandes nomes na culinária (duas “mestras de culinária”, como diria o Quim Barreiros…): Berta Rosa Limpo, com o seu Livro de Pantagruel, publicado em 1945 e com mais de 80 edições; e Maria de Lourdes Modesto.
Como tu falaste tanto da Maria de Lourdes Modesto – e bem – deixa-me falar um bocadinho sobre a Berta Rosa Limpo, que há muito merecia que alguém lhe escrevesse a biografia. Mulher fascinante, cantora de ópera nos palcos italianos e portugueses, empresária de sucesso, mãe do ator e realizador Jorge Brum do Canto.
Um dia começou a interessar-se, pedia todas as receitas aos restaurantes onde ia, às amigas, à família, à família das amigas, tomava nota de todas as receitas que lia nos jornais e revistas – e experimentava todas. Nunca recomendou nenhum prato que ela não tivesse ainda experimentado.
Morreu em 1981, aos 87 anos – o que parece comprovar que as peritas em culinária têm longa vida… Maria de Lourdes Modesto morreu aos 92….
Eu também gostava muito de falar com ela, e ela comigo. Às vezes ligava-me e eu já sabia para o que era: para me dizer, muito contente, que o meu marido tinha outra vez dito muito bem do programa dela. Embora nunca se tivessem conhecido pessoalmente, eles gostavam muito um do outro, e ela um dia até chegou a falar dele num dos seus programas na televisão. Lembro-me que a primeira vez que ele escreveu sobre ela no Diário de Lisboa, foi para dizer: «Até que enfim que aparece alguém que sabe falar em televisão!».
E pronto, acho que já chega. Tenho de ir fazer o jantar. Não sou nenhuma Maria de Lourdes Modesto ou Berta Rosa Limpo mas – pelo menos os meus amigos assim o dizem… – também não cozinho mal.
Bjs