Por Pedro Febrero, head of BlockChain naRealFevr
Já muito se discute nos dias de hoje se a produção de moeda deve estar integralmente separada do Estado. Dito de outra forma, qual é o sistema mais vantajoso para nós, o povo que mais ordena, e será esse sistema o que melhor se encaixa nos objetivos de quem produz moeda.
Embora a discussão possa parecer algo relativamente simples – isto porque a maior parte dos economistas concorda que o modelo atual é o mais propício e indicado para o contínuo crescimento económico – gostava de tentar expandir um pouco mais sobre as alternativas que existem hoje, e também analisar como os diferentes tipos de produção de moeda podem influenciar o poder de compra, produção, poupanças e investimentos dos agentes económicos.
O meu objetivo é apenas alargar o campo de discussão para que sejam incluídos modelos e escolas de pensamento económico que visam valorizar a moeda face aos bens e serviços que são produzidos numa dada economia, aumentando o poder de compra dos agentes sem necessariamente afetar negativamente o crescimento económico (produção e investimento).
Para isso, irei brevemente explicar como funciona a produção de moeda na generalidade das economias, qual o impacto que esse sistema tem no poder de compra, produção, investimento e poupanças dos agentes, e por fim irei abordar outros tipos de economias que englobam sistemas de produção de moeda alternativos e dar algumas luzes sobre períodos na história onde esses sistemas vingaram.
Para concluir, irei explicar porque a bitcoin separa o dinheiro do Estado, qual o impacto da bitcoin nos sistemas económicos correntes e qual o potencial de adoção como reserva de valor e como moeda a uma escala global.
Apertem os cintos. A viagem não vai ser fácil.
Produção de moeda no séc. XXI
Apesar de nós vivermos no continente Europeu, o meu discurso vai descrever o processo de criação e produção da moeda que atualmente domina os mercados mundiais: o dólar americano, ou USD ($). Contudo, grande parte do processo descrito em baixo também se aplica ao euro – com algumas salvaguardas pois a nossa moeda não é tão forte como o dólar, ou seja, não é aceite como instrumento de troca por tantas soberanias como o USD.
O dólar, e todas as moedas fiduciárias que existem como o Euro ou a libra esterlina, são produzidas direta e indiretamente pelos bancos centrais. Embora há quem acredite que a produção de moeda é feita apenas diretamente, através da impressão de notas e moedas físicas, a verdade é que a maior parte da moeda em circulação é criada de forma substancialmente diferente, sobretudo através de depósitos e especialmente através de créditos bancários.
Para isso é importante definir o processo de criação de moeda. (Figura 1, do autor)
O processo em cima é bastante simplificativo e, embora descreva de forma geral como são criados dólares, não tem em atenção algumas nuances que tornam a criação de moeda num processo mais complexo.
As T-BILLs, ou Obrigações do Tesouro, são emitidas pelo Tesouro, e representam a dívida do Estado. O Banco Central Americano, ou FED – uma instituição constituída por agentes privados – cria moeda de várias formas diferentes, contudo a mais corrente é através da compra de obrigações de tesouro em mercado aberto, geralmente a instituições financeiras como bancos. O FED pode também financiar diretamente o Estado adquirindo obrigações durante a emissão das mesmas.
Os bancos financiam-se geralmente através da venda de T-BILLS em mercado secundário, através de depósitos e empréstimos feitos a investidores e cidadãos, e também através da venda de ativos diretamente ao banco central, embora este mecanismo seja mais incomum no espetro de longo-prazo e tenha sido uma ferramenta usada durante períodos conturbados.
Por fim, as instituições não financeiras adquirem dólares através da venda de ativos como ações ou obrigações.
Portanto, os mecanismos principais para a criação de moeda são:
• Compra de obrigações de tesouro (T-BILLS) diretamente ao Estado ou à banca em mercado secundário.
• Depósitos bancários e concessão de empréstimos.
• Aquisição de ativos financeiros de instituições financeiras, não financeiras e banca (incluindo ‘aumentos quantitativos’ conhecido como QE).
O impacto da moeda fiduciária no quotidiano
Embora não seja comum pensarmos na nossa pessoa como um investidor ativo, peço-vos que o façam por um momento. Assumam que vocês são também investidores ativos. Como investidores, têm uma escolha simples para fazer. Devem guardar euros? Ou devem converter esses euros em algo que vos consiga manter, ou aumentar, o poder de compra?
Gostava de vos poder dar uma resposta concreta, mas as questões colocadas em cima levam-me a fazer uma última pergunta que acredito ser chave para podermos obter uma resposta conclusiva e satisfatória.
O que raio significa aumentar ou manter o poder de compra?
Poder de compra mede-se relativamente aos preços. Portanto, outra forma de ver a coisa é analisar o que comprava 1 EUR há 20 anos, e comparar com o que compra hoje. Olhando para a Figura 2, em baixo, e verificando os dados no Statista, podemos rapidamente confirmar que o mesmo 1 EUR que usávamos em 2000 perdeu sensivelmente 30% do seu poder de compra.
Quando comparado ao ouro esta queda ainda foi mais acentuada, na ordem dos 85%.
Portanto, para respondermos às perguntas em cima, podemos dizer que o poder de compra do euro – que se mede através do preço do cabaz médio de bens e serviços que conseguimos adquirir – caiu substancialmente. Isto significa que se nós fossemos investidores muito provavelmente não gostaríamos de querer ficar com euros. Quiçá dólares? Ações? Ouro? Bitcoin?
E se em vez de moeda usássemos dinheiro?
A pergunta em cima tinha rasteira. Obviamente que grande parte de vós não se considera um investidor ativo, e eu entendo perfeitamente o porquê. Os mercados são complexos, mover ativos acarreta riscos, e a verdade é que não é fácil conseguir decidir onde ‘aparcar’ os nossos euros com tanta escolha e com tanta volatilidade. Devo vender euros pelo quê?
Conteúdo, também observámos que o risco de não querer acarretar tamanha responsabilidade (sermos investidores), é perdemos garantidamente o nosso poder de compra.
Portanto, ou os vossos rendimentos aumentaram 30% em média desde o ano 2000, ou então muito provavelmente ficaram a perder.
Idealmente, seria que os euros não perdessem poder de compra – ou até pelo contrário, ganhassem.
Será que é possível ter uma moeda que consegue manter valor, ou seja, uma moeda que nos permita adquirir a mesma quantidade de bens e serviços com a mesma quantidade de moeda ao longo do tempo?
Embora não exista uma resposta que seja ‘a verdade’, podemos encontrar períodos da história mundial, nomeadamente nos Estados Unidos antes do dólar ganhar a hegemonia de hoje, e antes da criação do FED, onde era usado dinheiro ao invés de moeda fiduciária.
Essencialmente, durante o período conhecido como ‘National Banks Era’, que comporta a última metade do séc. XIX, e os inícios do século XX, onde bancos estatais operavam sob um sistema de ‘Free Banking’ – onde bancos criavam essencialmente a sua própria moeda, neste caso através de notas bancárias convertíveis numa quantidade fixa de ouro e prata.
A Figura 3 em baixo mostra algo que já discutimos previamente, o poder de compra. Porém, este gráfico analisa a informação de forma mais concreta e extensiva em termos de inflação, ou alteração no índice de preços do consumidor, entre 1850 e 2019.
Reparem que conseguimos dividir o gráfico em três momentos distintos:
I. Azul – Antes da criação do FED: 1850 a 1912.
Laranja – Depois da criação do FED e antes da abolição da convertibilidade entre ouro e dólares: 1913 a 1970.
Vermelho – Depois da abolição da convertibilidade dos dólares em ouro: 1971 a 2019.
O único período em que a moeda era efetivamente dinheiro, foi no período a azul, e onde a análise de salários, preços e crescimento económico consecutiva se vai focar. Explico um pouco mais à frente o significado de ‘moeda ser dinheiro’.
Voltando ao gráfico em baixo, poderíamos argumentar que pelo facto do preço dos bens e serviços ter diminuído entre 1865 e 1913, isso significa que muito provavelmente o consumo diminuiu, não houve crescimento económico e os salários não aumentaram. Imaginem lá o poder de compra das pessoas aumentar não só porque os preços dos bens e serviços caíram, mas também porque o rendimento aumentava. Isso era um ganho duplo, não me parece que acreditem em contos de fadas.
Entre 1850 e 1900, o Índice de Preços do consumidor e o rendimento ganho por um trabalhador médio por hora em dólares, comprovam o argumento anterior.
Embora os preços tenham descido em média cerca de 50%, a compensação salarial horária aumentou mais de 25%. Portanto isto é quase como um jackpot duplo porque não só os trabalhadores médios ganhavam mais por hora, mas também necessitavam de despender de cada vez menos moeda para adquirir bens e serviços.
Há quem diga que a tecnologia deveria, no longo-prazo, tornar o preço de grande parte dos bens que consumimos deflacionário. Mas levará este caminho a uma estagnação económica?
Essa é a pergunta-chave que se deve colocar para compreender melhor se o aumento do poder de compra pode gerar menos investimento e produção económica, visto que poderá existir uma tendência generalizada para acumular poupanças (’hoarding’), ao invés de gastar dinheiro em bens e serviços ou investir para procurar uma taxa de retorno (’yield’).
Estes dados analisados dão-nos uma resposta bastante clara sobre o crescimento económico numa economia desinflacionária, onde o poder de compra aumenta tanto pelos salários aumentarem, mas também pelo preço dos bens diminuir.
Essencialmente e relativamente ao PIB, durante o período que comporta 1850 a 1900, a economia dos Estados Unidos cresceu sensivelmente dos $119,408 milhões para os $479,691 milhões, o que representa um crescimento acima dos 400%! Trocado por miúdos, o PIB dos EUA quintuplicou (5x) entre 1850 e 1900. Bestial.
Para terminar esta secção é bastante relevante perceber o que significa medir o poder de compra em dinheiro, e não em moeda (fiduciária).
Dinheiro ou moeda?
Recorda-se de ter referido a diferença entre dinheiro e moeda? O gráfico acima ilustra bem como é crítico compreender as nuances entre ambas.
A verdade é que o dinheiro é uma tecnologia bastante diferente da moeda (fiduciária). A maior assimetria entre as duas tecnologias é que uma é meramente uma ferramenta contabilística, que serve para termos sempre a mesma unidade de medida – a moeda; enquanto a outra, é uma ferramenta extremamente útil para que o nosso poder de compra seja constante, ou perto disso, embora os preços possam ser voláteis – o dinheiro.
Por exemplo, se olharmos para a evolução do preço da cerveja, por mera coincidência um néctar muito apreciado entre os portugueses – especialmente no verão – em ouro e em euros, vemos que embora se tenha mantido relativamente estável em ouro, o mesmo não se pode dizer em euros: o preço da cerveja aumentou 16 vezes!
Assim, concluímos facilmente que um dos benefícios de usar dinheiro, ao invés da moeda fiduciária, é que conseguimos manter o nosso poder de compra, e conseguimos de uma forma relativamente fácil guardar valor ao longo do tempo – sem a preocupação do ativo que estou a guardar (dinheiro) irá desvalorizar relativamente ao total de bens que consigo consumir.
Portanto podemos facilmente argumentar que o dinheiro possui as propriedades da moeda, mas que a moeda não possui as propriedades do dinheiro.
Bitcoin: a separação total entre dinheiro e Estado
Todas as histórias têm um lado negro. E o lado negro do dinheiro é bastante profundo.
O dinheiro como tecnologia é claramente aliciante para a plebe. Ou seja, para quem tem hoje acesso à moeda que é distribuída pelos bancos centrais em último lugar.
Sim, se ainda não repararam, na história da criação da moeda primeiro vêm os estados, depois os bancos e as instituições financeiras, depois as instituições não financeiras, e só no final da pirâmide, para beber das últimas gotas da torneira jorrante de dólares (ou euros), está o povo – o típico assalariado que consome e gasta. Eu e você.
Portanto diria que a tecnologia do dinheiro é extremamente atraente, até deleitosa, para o comum dos mortais. Porque raio não haveríamos nós de viver num mundo em que a nossa moeda vale mais amanhã do que vale hoje?
É aqui que nos deparamos com o abismo, onde mora o lado negro que falei há pouco. Num tipo de economia onde efetivamente a produção de moeda não está somente ligada a um banco central, existe o grave problema dos estados não conseguirem diretamente financiar as suas economias e atividades.
Dito de outra forma, o problema que afeta 99% dos bancos centrais, aqueles que produzem uma moeda local mas estão subjugados ao dólar, iria trespassar para os bancos centrais poderosos como o FED ou o Banco Central Europeu (BCE).
O lado negro do dinheiro é que este retira parcialmente o poder de criação de uma reserva de valor de forma singular por parte de um estado soberano. Portanto não será de todo a tecnologia preferida para quem governa hoje.
Infelizmente (ou felizmente), a bitcoin veio para ficar. Desta forma, existirá sempre uma escolha para todos: podemos guardar o nosso dinheiro em bitcoin (BTC) ou numa moeda fiduciária à escolha, como euros ou dólares.
O facto de existir uma moeda nativa da internet chamada bitcoin, cujo funcionamento eu descrevo em detalhe neste artigo, permite que todos os cibernautas e cidadãos do mundo tenham uma escolha.
A bitcoin não vem substituir os bancos centrais, mas sim competir com eles. Não será a bitcoin que impedirá os governos de financiarem as suas atividades. Caso seja a escolha de eleição do povo de uma soberania, isso de facto irá limitar as ações do Estado e banco central dessa mesma região. Porém, qualquer estado-nação tem a oportunidade de competir com a bitcoin e demonstrar empiricamente, através do preço e da escolha do mercado, porque a sua moeda é melhor (ou pior) do que a bitcoin.
Efetivamente, a bitcoin é um dinheiro passivo, não-agressivo, e cujo protocolo fica mais robusto com cada ataque que sofre; a única forma da bitcoin progredir como rede é adquirindo mais mineradores e usuários; a única forma do preço da bitcoin continuar a aumentar no longo-prazo contra moedas fiduciárias, é através de mais pessoas escolherem entrar e ficar, do que aquelas que são passageiras.
Os estados podem efetivamente coagir os seus cidadãos a usar a sua moeda fiduciária ad-eternum. Mas será essa a melhor opção para uma qualquer democracia? Ou deverão os estados-nação assumir a existência plena da bitcoin ao aceitarem bitcoin como meio de pagamento de impostos, dando aos seus soberanos uma escolha efetiva entre moeda e dinheiro?
Num cenário quase utópico aos dias de hoje, a escolha que maximiza o benefício para um qualquer estado-nação, incluindo Portugal, seria manter a sua moeda, aceitar bitcoin e até minerar bitcoin – especialmente para aquelas soberanias que produzem eletricidade a baixo custo.
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