Geopolítica e cinema português. Tenha um bom filme!

Gostaria que o ‘Terra Nova’, filme que relembra a espacialização híbrida das nossas fronteiras,  tivesse tido igual impacto geopolítico, como a recente reedição do ‘Top Gun’

Por Virgílio Machado, professor adjunto da UALG e autor de Portugal Geopolítico

Quem já não viu A Canção de Lisboa (1933)? O Pátio das Cantigas (1942) ou Aniki Bobó 1942)? E que dizer do Leão da Estrela (1947)? Estávamos no arranque do cinema português. A indústria cinematográfica com a Tobis Portuguesa dava seus primeiros passos. A designação portuguesa assinalava uma subtil ligação a um ideário nacional.
Pela primeira vez, Lisboa e Porto, as principais cidades do país, apareciam a grandes audiências em salas de cinema.

Sem descurar a importância dos pátios. E do seu sentido comunitário. A espacialização, com as suas fronteiras, mas também com os seus perigos, revelava-se num construto cinematográfico, onde o humor, a sátira, o romance, o fado, a intriga, a vida do dia-a-dia ou o retrato de paisagens urbanas e rurais constituíam construção de uma comunidade e identidade portuguesas. O Estado Novo oferecia mais seguranças que incertezas. Assim os filmes tinham geralmente um final feliz. Semelhanças com a atualidade? 

Para os cinéfilos mais distraídos, registe-se que as peças citadas passam renovadamente na televisão pública portuguesa e algumas ganharam direito a refilmagem no século XXI. Por razões de memória, tradição, expressão vernacular da cultura portuguesa, dirão alguns. Ouso outra explicação: os filmes, sejam produzidos, reproduzidos ou com mais audiência em Portugal ou em qualquer parte do mundo visam intenções e sucessos geopolíticos. 

Estamos no plano da geopolítica popular. Esta revela-se nas novelas, cinema, teatro, comédia, banda desenhada, entre outras formas de expressão artística e cultural. Estas dirigem-se a um povo. Um povo é uma ligação de elementos culturais. O cinema geopolítico ajuda a construí-la. E a alicerçar o povo. Seja pela imaginação criativa que estabelece uma interação comunicativa entre produtor/utente nas sociedades democráticas ou na vontade de domínio e capacidade de controlo das massas nos governos autoritários, a geopolítica está presente. 

O cinema é imagem, esta liga-se a um lugar ou a uma cultura. Por sua vez, a imagem também tem o poder de fazer novos tipos de fronteiras e construir novas identidades. O que fazia o saudoso realizador Manoel de Oliveira. A Divina Comédia (1991) ou Vale Abraão (1993) galardoados internacionalmente, são filmes de uma identidade europeia em construção. Todavia, o público português não acompanhou nas salas de cinema. Admite-se que outras realizações europeias tenham sido premiadas. Mas o generalizado insucesso nas audiências acompanha um fracasso geopolítico europeu. Que dele se dê boa conta.

E o que dizer do cinema na construção da identidade norte-americana? Os westerns com índios e cowboys ou os heróis da banda desenhada, como Batman ou o Super-Homem como exemplos, exprimem a saga de heróis ou vigilantes que lutam, pelo progresso, ora contra o atraso de sociedades indígenas, ora a favor da justiça, contra o crime sofisticado nas grandes cidades, combatendo a violência e a corrupção generalizada de grandes empresas e políticos, polícias e bandidos, estes génios do mal. Estes ideários são construtos geopolíticos de sucesso.

Portugal e seu público acompanham-no geracionalmente. Uma razão fundamental é que a identidade geopolítica portuguesa nela se revê e interage. Porque, tal como nos Estados Unidos, a nossa cultura é a do movimento, do transporte, da comunicação. Tal como no outro lado do Atlântico, o nosso sentido de fronteira é progressivo e nunca realizado espacialmente, no caso português miticamente encarnado no Quinto Império ou fisicamente nas emigrações ou viagens de pesca além-mar. Por último, enquanto cinema, a interação norte-americana permite-nos a evasão de um quotidiano, onde um desejo de um mundo melhor faz-se com liberdade, tecnologia e a procura de uma justiça que nos foge sempre das mãos. O recente sucesso da reedição de Top Gun (2022/1986), num pretenso mundo pós-pandémico, é bem revelador. Gostaria que o Terra Nova (2021), filme que relembra a espacialização híbrida das nossas fronteiras, com apelo à memória coletiva dos perigos, ansiedades e esperanças na pesca no alto-mar do bacalhau, tivesse igual impacto geopolítico. Entre os anti-heróis do mar e os heróis do ar, os portugueses a estes aderem. Tenha um bom filme!