MEO Kalorama. A missa de São Nick Cave e os seus Di(seeds)pulos

O último dia do MEO Kalorama teve Nick Cave em modo ‘Deus’, mas também Ornatos Violeta, Chet Faker e Disclosure.

O Parque da Bela Vista, em Lisboa, despediu-se, neste sábado, da primeira edição do festival MEO Kalorama, que tinha como grandes cabeças-de-cartaz os britânicos Arctic Monkeys, mas que, na realidade, viu Nick Cave e os acompanhantes Bad Seeds dar, possivelmente, o melhor concerto de toda esta edição do recém-nascido festival.

O australiano, que mal teve tempo de ganhar saudades de Portugal – esteve no Porto, em junho, no NOS Primavera Sound – guiou as massas de festivaleiros numa verdadeira ‘missa’, onde foi padre e Deus ao mesmo tempo num concerto catártico, desenhado para libertar todos os demónios da vida mundana – e o que não falta a Nick Cave são demónios e momentos trágicos: o seu filho Jethro Lazenby morreu em maio deste ano, com apenas 31 anos. Isto sete anos após a morte de Arthur, o seu filho de 15 anos que caiu de um penhasco em Brighton.

Passando mais tempo na plataforma que se encontra ao nível do público propriamente do que no palco, Nick Cave fundiu-se com as primeiras filas do concerto, que ficaram, sem sombra de dúvida, com uma história para contar aos seus filhos e netos, pois a proximidade era notória, estando praticamente a comer da palma da sua mão. Cave tocou, cantou e encantou durante mais de duas horas, acompanhado pelos fiéis Bad Seeds – entre eles o mítico guitarrista barbudo Warren Ellis, quase que 'guia espíritual' deste 'culto' – e mais um trio de cantores gospel que completou ainda mais o ‘imaginário’ quase religioso que cobriu este longo mas intenso concerto.

Arrancou-se com Rock and Roll pesado: Get Ready for Love entoava o aquecer de motores para o que aí vinha, seguido do clássico There She Goes, My Beautiful World, do álbum Abattoir Blues/The Lyre of Orpheus (2004). O ar ficou eletrificado e dançar era quase obrigatório, neste que foi o último concerto de uma tour que durou três meses.

Seguiu-se From Her to Eternity, com Cave sentado ao piano. Rapidamente, no entanto, o australiano acabou por regressar à sua posição standard: subindo e descendo entre o palco e a plataforma inferior. Foi lá, aliás, que ficou a saber que era o dia de aniversário de uma das fãs que ocupava a primeira fila. “É o teu aniversário? Foda-se, não sei o que dizer. Feliz aniversário, esta música é para ti”, dedicou Nick Cave à fã, chamada Paula, que homenageou com O Children.

Pronto se voltou, ainda assim, às ‘malhas’, com uma verdadeira festa ao som de Jubilee Street, uma música sobre “uma história de amor que correu muito mal”, e que fez delirar o público atento.

Os concertos de Nick Cave and The Bad Seeds são sempre uma história de várias emoções, de altos e baixos, de momentos de Rock and Roll e de baladas, de riso e de choro. A banda balança majestosamente entre vários registos, exímios em cada um deles. Fale-se, por exemplo, da melancolia de Bright Horses, com o ‘front man’ sentado ao piano a puxar pelo sentimentalismo máximo. O mesmo se aplica a I Need You e Waiting for You, que se seguiram no line-up.

“Just breathe” é a frase que Nick Cave repete uma e outra vez, servindo quase de mantra a esta sua longa missa, que continuou com um dos seus clássicos: Tupelo, a canção em homenagem à cidade que viu nascer Elvis Presley em 1935, e que serviu de mote para que, tal como já vinha querendo fazer desde o início do concerto, o australiano subisse, literalmente, para cima do público, onde continuou cantando, segurado pelas mãos dos seus fiéis seguidores.

Mãos estas, aliás, que Cave foi segurando à medida que percorria a setlist, e que seguiram o vocalista ao longo de praticamente todo o concerto, de um lado para o outro, como se de um Messias se tratasse.

Uma música atrás da outra, faltava ainda um clássico que inevitavelmente põe sempre os festivaleiros em transe: Red Right Hand, o tema de 1994 que fez furor e se tornou num dos hinos principais do australiano, e que se popularizou como o tema musical da série britânica Peaky Blinders. Como não podai deixar de ser, o público, pintado de vermelho pelas luzes do palco, não falhou uma palavra do refrão desta canção.

“Boa Noite”, gracejou Nick Cave chegando já ao fim do concerto, que contou ainda com The Mercy Seat, The Ship Song e Higgs Boson Blues, do álbum Push the Sky Away (2013), esse sim um tema que verdadeiramente elevou o australiano ao estatuto de ‘Deus’.

Nick Cave e os Bad Seeds deixaram o palco, mas mesmo depois de duas horas de concerto, os fãs não pareciam satisfeitos, e pediram mais, mais e mais. E mais, mais e mais foi o que tiveram. É que, afinal de contas, faltava ainda mais um dos grandes ‘hinos’ da banda: Into my Arms, de The Boatman’s Call (1997), que o australiano dedicou a Beatriz Lebre, a jovem de Elvas assassinada e atirada ao rio Tejo, em 2020.

É certo que o público português tinha ainda na boca o sabor do concerto de Nick Cave e os Bad Seeds no NOS Primavera Sound, em junho, mas houve algo de diferente no Parque da Bela Vista, algo de mais emocionante. E isso sentia-se na própria banda, que emanava alegria e felicidade por estar em Lisboa – onde não pisavam os palcos há 14 anos – por todos os seus poros.

 

Ornatos, mais uma vez

Mesmo antes de Nick Cave pisar o palco principal do MEO Kalorama, no entanto, o público foi presenteado com um concerto dos eternos Ornatos Violeta, que provaram que um álbum, se for bom, não tem prazo de validade.

A morte da banda liderada por Manel Cruz foi anunciada há já largos anos, mas ainda não há sinais desse falecimento. É certo que houve um largo hiato até ao seu regresso (um deles), em 2019, mas não por isso os seus hinos deixaram de fazer parte do imaginário nacional no que toca ao Rock e à música portuguesa.

Os Ornatos são autores de dois álbuns de estúdio: Cão!, de 1997, e O Monstro Precisa de Amigos, de 1999. É precisamente este último o mais icónico da banda oriunda do Norte do país, onde tem a sua massa crítica mais ferrenha. No Kalorama, no entanto, o público dançou e vibrou com os temas mais populares deste álbum, que teve direito a ser tocado praticamente na íntegra à medida que o sol se punha sobre o Parque da Bela Vista.

Coisas foi o ponto de partida, servindo para aquecer motores e receber Deixa Morrer e Para Nunca Mais Mentir, todos eles temas da ‘obra prima’ dos Ornatos Violeta que conta já mais de 20 anos de idade, mas que continua a levar as massas a cantar em uníssono e a dançar em harmonia.

Quem não parecia estar, no entanto, em total harmonia, era a própria banda. De vez em quando, para os mais atentos, sentiam-se alguma descoordenação entre os seus elementos, levando mesmo a que, enquanto cantava Dia Mau, Manel Cruz se tenha enganado na letra, precisando de puxar a fita para trás e começar de novo. “Ó Peixinho, outra vez. Fodi tudo”, gracejou o homem principal da banda, redimindo-se da ‘gafe’.

Daí em diante, no entanto, salvo umas pequenas exceções, os Ornatos pareceram encontrar novamente o equilíbrio, e dedicaram-se a dar vida ao álbum que escreveram há mais de 20 anos. Pára de Olhar Para Mim e O.M.E.M., também eles temas de O Monstro Precisa de Amigos, seguiram-se, abrindo alas para que Cruz, entusiasmado, se atirasse para o público.

A festa no palco principal do MEO Kalorama estava instalada, e estava reiterado um facto conhecido: os Ornatos Violeta continuam a ser uma das bandas em Portugal com uma das maiores e mais comprometidas bases de fãs. Um pouco por todo o recinto se encontravam pessoas a cantar, palavra por palavra, as músicas dos diferentes hinos da banda, enraizados ao longo das últimas duas décadas.

Há, no entanto, um hino que bate todos os outros. Quando se ouviram os primeiros acordes de Ouvi Dizer, o MEO Kalorama explodiu em balada, praticamente cantando em uníssono e sem falhar uma palavra deste tema lendário da banda, de início ao fim – diga-se de passagem que, se por vezes se sentiu algum ‘tremelique’ na voz de Manel Cruz, o final não falhou: “O amor é uma doença/ Quando nele julgamos ver a nossa cura”, dramatizou o festival inteiro em coro, fazendo eco às palavras proferidas originalmente por Vítor Espadinha.

A energia sentia-se no ar e os Ornatos não queriam colocar fim a este concerto. Tanto que continuaram com Capitão Romance e Chaga. Até aqui, nem sinal de Cão!, ou de qualquer outro tema de Manel Cruz a solo… talvez más notícias para quem prefere outros trabalhos dos Ornatos.

“Tínhamos uma para tocar ainda, mas disseram que afinal podemos tocar mais duas”, celebrou a banda, e provavelmente também os fãs que esperavam ainda ansiosos poder ouvir um ‘cheirinho’ de Cão!… mas não foi assim. O encore repetiu a receita de anos anteriores, com Há-de Encarnar e Pára-me Agora, partes do álbum de Inéditos e Raridades da banda editado em 2011, para fechar um concerto que mostrou que, quando os trabalhos furam a barreira do banal, não têm prazo de validade.

 

Um festival para todos

O fecho do terceiro e último dia do MEO Kalorama ficou à responsabilidade dos ingleses Disclosure, que subiram ao palco principal quando faltava cerca de um quarto de hora para a uma da manhã. Isto depois de Chet Faker ter tomado de assalto o palco secundário, onde umas horas antes tinha estado a canadiana Peaches e o seu concerto carregado de mensagens políticas, com grandes tarjas que liam ‘Abortion’ a marcar o pano de fundo.

O MEO Kalorama fechou assim a sua primeira edição, que veio mostrar aquilo que pretende ser: o último festival de verão de grande dimensão, capaz de atrair nomes de relevo internacional. Nesta edição, passaram 112 mil pessoas pelo recinto, 32% das quais de nacionalidade estrangeira. É preciso agora aprender e afinar os detalhes para a próxima edição, que já tem datas marcadas: 31 de agosto, 1 e 2 de setembro de 2023. O lugar, esse é ainda incerto, sabendo-se apenas que ficará em Lisboa.