Poucos explicaram tão bem as sensações que emergem quando vemos certos filmes como o realizador norte-americano, Samuel Fuller, no filme Pierrot le fou (Pedro, o louco, de 1965) de Jean-Luc Godard. “O cinema é como um campo de batalha”, explicava a Jean-Paul Belmondo, personagem titular do filme, com a ajuda de Anna Karina, que servia como tradutora. “Existe amor, ódio, ação, violência, morte… numa palavra: emoção”.
A forma como Fuller definiu a sua visão do cinema não estará muito longe daquilo que o influente realizador francês, que morreu esta terça-feira, aos 91 anos, na Suíça, queria para os seus filmes. Com trabalhos como Pierrot le fou, À bout de souffle (O_Acossado) ou Vivre Sa Vie, ajudou a definir o movimento que ficou conhecido como Nouvelle Vague, a nova vaga do cinema francês, nos anos 1960, mas também a história do cinema moderno, influenciando gerações sucessivas de cineastas.
Com uma vida inteira dedicada ao cinema, a carreira de Godard, que se expandiu em seis décadas, com mais de 90 obras, entre longas-metragens, documentários ou curtas, cimentam-no como um dos mais “produtivos, maliciosos, didáticos, subversivos e polarizadores” realizadores da história do cinema, tal como descreve o Washington Post, devido ao uso de revolucionárias técnicas narrativas, de continuidade, som ou trabalho de câmara.
A morte do realizador foi avançada pelo jornal francês Libération, que avançou que Godard recorreu ao suicídio assistido, que é legal na Suíça, perecendo de forma tranquila junto à sua esposa, Anne-Marie Miéville.
“Ele não estava doente, estava simplesmente exausto. Então tomou a decisão de acabar com a vida. Foi uma decisão de Godard e era importante para ele que isso fosse conhecido”, disseram fontes próximas do realizador.
Segundo o jornal francês, Godard sempre teve um “fascínio” pelo suicídio e, no passado já tinha manifestado o desejo de recorrer a esta prática. “Não estou ansioso para continuar a todo o custo. Se estiver muito doente, não quero ser arrastado por um carrinho de mão”, disse à Radio Télévision Suisse.
Godard nasceu em Paris, mas passou os seus anos formativos na neutral Suíça, para onde a sua (abastada) família se mudou e viveu durante grande parte da Segunda Guerra Mundial. O seu pai era médico e a mãe era filha de Julien Monod, fundador do Paribas, ainda hoje um dos potentados da banca francesa.
Apesar de ter estudado etnologia na Universidade da Sorbonne, em Paris, Godard foi atraído para o cinema enquanto frequentava a cinemateca, fundada pelo influente curador Henri Langlois, e começou a interessar-se pela 7.ª arte também devido à influência do trabalho do antropólogo Jean Rouch, que se tornou um dos fundadores do estilo de filme documental cinéma vérité, em que os cineastas utilizam equipamentos leves para observar o seu objeto com a máxima informalidade, sem preconceitos e motivos, que emergem apenas durante a filmagem ou mesmo mais tarde, na fase de montagem.
Nesse período, o francês começou a trabalhar na revista Cahiers du Cinéma, como crítico, tendo conhecido influentes personalidades como o crítico André Bazin ou futuros colegas de profissão como François Truffaut (responsável por The 400 Blows), e Jacques Rivette.
Nos seus textos, Godard ofereceu uma perspetiva “dissidente”, escreve o Guardian, e defendeu o cinema tradicional de Hollywood, promovendo nomes como Howard Hawks e Otto Preminger em detrimento de figuras mais elegantes, assim como atores como Humphrey Bogart, uma das suas principais referências, que viria a ocupar um espaço especial no seu primeiro filme, O_Acossado, lançado em 1960.
Depois de trabalhar como editor e de realizar diversas curtas-metragens, Godard aproveitou uma ideia abandonada do seu colega da Cahiers du Cinéma, Truffaut, de fazer um filme sobre a relação de um criminoso (Belmondo) e a sua namorada (Jean Seberg) para se estrear na realização.
Depois do sucesso de Os 400 Golpes, Truffaut produziu Breathless para Godard, um filme que jogava com os clichês de filmes tradicionais de gangsters e que se tornou um dos seus mais famosos e aclamados filmes.
Uma das técnicas mais populares deste filme era o “jump cut”, onde acontece um corte que remove parte de uma cena gerando uma transição brusca entre eles dois planos, permitindo um salto temporal.
Segundo reza a “lenda”, Godard, que estava a trabalhar com restrições rígidas de tempo e orçamento, confiou nestes cortes simplesmente porque ficava sem filme, contudo, esta teoria tem sido refutada ao longo dos anos, com muitos críticos a afirmarem que O_Acossado se tornou uma obra de arte inovadora pela forma como evitava uma narrativa linear e “qualquer coisa que cheirasse a convenção”.
“Como consistência de perspetiva na narração e edição discreta”, escreve Adam Bernstein do Washington Post. “Godard usou “jump cuts” para perturbar; esta técnica de edição agora é comum em filmes e videoclipes, mas foi surpreendente no início dos anos 1960”, afirma.
Mas não é só aqui que a importância de Godard se faz refletir, com críticos também a apontar para a forma como insistia em colocar referências este popularizou a utilização de personagens descritas como anti-heróis e a sua empatia.
“Embora o delicado drama sobre amadurecimento de Truffaut, Os 400 Golpes, e o romance sociopolítico de Resnais, Hiroxima, Meu Amor, tenham gerado bastante burburinho um ano antes, ou a estreia de Varda, Le Pointe Courte (1955), O_Acossado efetivamente levou a nova vaga francesa para o público geral, fornecendo um novo modelo para a criatividade cinematográfica”, escreve o Indiewire.
Depois deste filme de estreia, Godard e os realizadores franceses assumiram a crista da onda da inovação do cinema e procuraram renovar uma indústria que consideravam estar presa no tempo. “Nós invadimos o cinema como homens das cavernas na Versalhes de Luís XIV”, disse Godard, citado pelo Washington Post.
A influência de Godard continua a ser sentida nos dias de hoje, sendo considerado uma referência para mestres clássicos e talentos mais recentes, desde, Martin Scorsese a Quentin Tarantino, Brian De Palma, Steven Soderbergh, Robert Altman, Jim Jarmusch, Wong Kar-wai, Wim Wenders, Bernardo Bertolucci, ou Pier Paolo Pasolini, chegando inclusive a vencer um Óscar honorário, entregue em 2010, numa cerimónia à qual não compareceu.
Tarantino, que por diversas vezes referiu Godard como um dos seus maiores exemplos e O_Acossado como um dos seus filmes favoritos, comparou o cineasta com outro artista pela forma como livrou o cinema da “tirana realidade”, criando uma visão mais “cinemática”.
“Esse é um aspeto de Godard que achei muito libertador – filmes que comentam sobre si mesmos: outros filmes e a história do cinema”, explicou Tarantino, citado pelo blog Far Out. “Para mim, Godard fez com os filmes o que Bob Dylan fez com a música: ambos revolucionaram as suas formas”, explicou o realizador que se inspirou em Godard para dar o nome à sua produtora: Bande à part, filme de 1964 do francês.
“Godard foi quem me ensinou a diversão, a liberdade e a alegria de quebrar as regras… e apenas brincar com todo o meio do cinema”, confessou Tarantino.