Além da venda a preços estratosféricos de bilhetes para espetáculos esgotados, muitas são as ocasiões em que a expressão “crime de especulação” ou a simples palavra “especulação” surge nas notícias ou é por nós proferida. No entanto, sabemos exatamente aquilo que está em jogo quando a mencionamos? Para Tiago da Costa Andrade, advogado do Departamento de Criminal, Contraordenacional e Compliance da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados, não há dúvida de que “a melhor definição de um crime é sempre a constante da lei penal”.
Ou seja, “neste caso será nos números 1 e 2 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que consagra o regime jurídico em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública”. E salienta: “Em linguagem livre diria que o crime de especulação é a disposição legal que visa prevenir uma alteração de preços quando a fixação destes não esteja na disponibilidade dos operadores económicos ou que seja contrária ao regular exercício da atividade em causa”, diz o também assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – cidade onde decorrerão os concertos dos Coldplay – onde leciona Direito Criminal.
Mas quem fala nos espetáculos pode falar também de outros eventos e em contextos diferentes. E em Portugal há vários casos que nos podem fazer pensar no crime de especulação: o arrendamento de quartos e casas, assim como a venda de imóveis a preços exorbitantes; a comercialização de obras de arte – por exemplo, os quadros da pintora Paula Rego, que começaram a ser vendidos por valores muito superiores após a sua morte; preços alterados em equipamentos de abastecimento de combustível (como a ASAE detetou no final de julho, numa bomba de gasolina em Ermesinde); ou até a detenção, em maio, de cinco pessoas que vendiam bilhetes, para a final da Taça de Portugal, obtendo 500% de lucro por cada.
Mas se voltarmos ao exemplo dos bilhetes para os espetáculos dos Coldplay será que compreendemos melhor o que está em causa? Segundo a legislação, “será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem: vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos”. Isto significa que os bilhetes para os diversos concertos somente podem ser vendidos ao denominado “preço de bilheteira”, ou seja, entre os 65 e os 150 euros dependendo da zona do estádio escolhida.
Tiago da Costa Andrade explicita que esta lei “só se aplicará se os preços dos bens ou serviços estiverem fixados ou tabelados por lei, através da previsão de um preço máximo ou indexado a margens de comercialização”. Portanto, “se os bilhetes forem revendidos ao chamado ‘preço de bilheteira’ então não haverá crime de especulação”. Até aqui, conseguimos compreender, efetivamente, aquilo que está em jogo, mas esta reflexão pode suscitar-nos mais dúvidas.
Ora vejamos: nas alíneas seguintes, lê-se que também será punido “quem alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da atividade resultariam para os bens ou serviços ou, independentemente daquela intenção, os que resultariam da regulamentação legal em vigor” (alínea B) ou “vender bens ou prestar serviços por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço” (alínea C). Tal significa que podemos considerar que quem vende bilhetes (em plataformas como o OLX ou o Marketplace do Facebook) a preços muito superiores ao valor facial está a cometer este crime e pode efetivamente ser punido?
No caso da alínea b, o advogado acredita que “eventualmente poderíamos ser levados a pensar que se aplicaria diretamente a este caso”, mas “exige uma intenção de obter um lucro ilegítimo e que o preço seja alterado à revelia do regular exercício da atividade. Ora, se o conceito de regular exercício da atividade se deve referir ao funcionamento normal da lei da oferta e da procura, e se o lucro obtido com a revenda a preço superior refletir o lucro decorrente do funcionamento daquela lei do mercado (poucos bilhetes para muitos interessados) então não deve poder ser considerado com um lucro ilegítimo”, observa, “Mais dificuldades de aplicação ao caso apresentado são suscitadas pela circunstância de, ao abrigo da alínea b), o crime se consumar logo com a mera alteração do preço, e pela finalidade do crime de especulação a que me refiro a propósito da alínea c)”.
E se “o promotor só vendesse cada bilhete mediante a apresentação ou prova de identificação pessoal”? “A alínea c) é aquela que apresenta maior aproximação ao caso da revenda de bilhetes a preço superior ao valor facial unitário. Não se exigindo na alínea c) que o preço seja fixado por lei, deve ter-se por referência o preço dos bilhetes fixado pela entidade promotora do concerto”, indica o mestre em Ciências Jurídico-Criminais que publicou a monografia O Crime de Burla. “No entanto, o que a meu ver impede a punição pelo crime de especulação da revenda dos bilhetes dos Coldplay acima do valor de bilheteira é a finalidade (o bem jurídico) do crime de especulação”, diz, afirmando “que o crime de especulação existe para garantir a estabilidade dos preços à luz do regular funcionamento da economia e não dos interesses dos consumidores (neste caso, as pessoas interessadas em ir ao concerto), o que apenas se visa de modo reflexo ou subsidiário”.
“Se a revenda atenta contra os interesses dos consumidores, mas não afeta minimamente o regular funcionamento da economia, então não haverá lugar a punição”, realça Tiago da Costa Andrade, avançando que “é sempre necessário que a conduta do agente atente contra o funcionamento da economia, o que poderá acontecer muito mais facilmente com a revenda de bens essenciais – por exemplo, o que acontecia com equipamentos de proteção individual e comunitária no contexto de pandemia – do que com bilhetes para concertos – mesmo que se goste muito dos intérpretes e que seja uma oportunidade única assistir a um concerto seu em Portugal”, assevera, indo ao encontro da perspetiva transmitida pela ASAE ao i, nas páginas anteriores.
Prosseguindo com a leitura da legislação, apercebemo-nos de que “havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias”. Neste sentido, em que medida os legisladores utilizam a palavra “negligência”? “O significado de negligência deve buscar-se no artigo 15.º do Código Penal, aplicável nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 28/84, de 20 de janeiro. Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização (negligência consciente), ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente). Estaríamos, por exemplo, a falar de especulação negligente se uma pessoa vender um bem com um preço superior ao legalmente fixado, sem verdadeira intenção de o fazer, mas, ainda assim, fazendo-o sem ter verificado que o fazia quando a isso estava obrigada”, clarifica o advogado, recordando que, à luz da legislação, “o tribunal poderá ordenar a perda de bens ou, não sendo possível, a perda de bens iguais aos do objeto do crime que sejam encontrados em poder do infrator”. Isto é, aqui estão abrangidos “os bens que seriam vendidos a preço superior ao devido, mas também o lucro ilícito que o infrator tenha obtido com a venda e, ainda, os bens adquiridos com o dinheiro ou valores obtidos com a prática de crime”.
Apesar das notícias que já foram veiculadas sobre o tema, os anúncios multiplicam-se: encontramos facilmente bilhetes a centenas de euros ou até ofertas em que os bilhetes são trocados por outros (para concertos como o de Harry Styles) ou por outros bens. Aqui, continua a existir o crime de especulação (dependendo do preço do outro bem) ou existem outros ilícitos em causa que não esse? “Como referi acima, acho difícil que, com a atual configuração típica do crime de especulação, aliada à sua inserção sistemática no regime jurídico das infrações antieconómicas e atendendo à finalidade que o legislador quis cumprir quando criou este crime, possa haver crime de especulação nesses casos. E, embora possa ser uma afirmação ambiciosa, também me parece que é difícil haver crimes que visem responder a essas situações específicas. Porque o Direito Penal e os seus crimes não devem servir para intervir em vendas de bens não essenciais num mercado que se quer livre”, declara. “Isto, claro está, sem prejuízo de este ser um terreno fértil para a prática de outros crimes, como falsificações, burlas ou até mesmo ilícitos de natureza fiscal ou de branqueamento de capitais”, considera o jovem advogado.
“Se o promotor só vendesse cada bilhete mediante a apresentação ou prova de identificação pessoal, a qual também seria exigida à entrada do espetáculo para cada portador de bilhete, talvez fosse uma maneira de evitar este tipo de situações”, raciocina. “E para quem não pudesse ir ao espetáculo e precisasse de ceder o seu bilhete, penso que não seria descabido que o promotor tivesse um sistema de recompra do bilhete ao seu original titular e o revendesse pelo preço que tabelou a outra pessoa e de acordo com os mesmos requisitos”, sugere. “E para quem quisesse oferecer um bilhete a outra pessoa, um sistema que previsse, por exemplo, a reserva provisória do bilhete por parte do promotor sujeita à condição de a pessoa a quem foi oferecido se apresentar perante aquele, fazer prova da sua identificação e associá-la ao bilhete”, recomenda ainda, deixando claro que “o crime de especulação apenas pode servir para punir os vendedores ou quem tem a possibilidade de alterar os preços de um determinado bem ou serviço”. “Não consigo imaginar uma situação em que o comprador possa ser agente do crime de especulação, até porque é quem é (apenas) reflexamente protegido por este tipo de crime”, finaliza.