Em agosto de 1936, Isidro Lángara Galarraga estava preso. De certa forma, como escreveria o meu querido amigo Manuel Alegre, estava no seu posto. O grande problema é que Lángara, que tinha apenas 24 anos, não se sentia no seu posto, embora na verdade o estivesse. A Guerra Civil de Espanha explodira um mês antes e Lángara Galarraga era basco. O nome não enganava. Podia ser o Homem dos Golos Impossíveis de uma linha avançada do Oviedo que levou a alcunha de Delantera Eléctrica, mas era basco. Podia já ter vestido a camisola da seleção de Espanha por 12 vezes e marcado 17 golos que continuava basco. Ah! «Me cago en diez!». Os milicianos desconfiavam de todos os bascos. Mesmo de Lángara, do bihotza (coração) de ouro, que estava tranquilamente estendido no areal de uma das margens do rio Oria, em Andoain, gozando as suas férias: enredaram-no como se fosse um peixe e fecharam-no no porão de um navio chamado Cabo Quilates, fundeado ao largo do porto de Lekeitio, no Golfo da Biscaia. A acusação foi rápida: é sempre assim que acontece com as acusações sem fundamento. Isidro era considerado um perigoso republicano que participara numa violenta repressão efetuada contra uma manifestação de mineiros das Astúrias dois anos antes.
Toda a gente em Espanha conhecia Lángara. Era o que faltava! Tinha asas de pássaro e pernas de gazela, voava por entre defesas másculas e deixava para trás a maldade dos adversários que pretendiam caçá-lo a patadas. Todos sabiam que não se interessava por política, só por futebol, o jogo dos seus sonhos, desde que passara por clubes pequenos de nomes incandescentes como o Bildur Guchi, o Esperanza de San Sebastián, o Siempre Adelante de Pasajes e o Andoain, que era da sua terra natal.
Até aí, a vida de Isidro tinha sido uma vida de golos. Durante os anos que passou no Oviedo, antes de ser velhacamente apanhado num luta que não era sua, marcara a ninharia de 281 golos em 212 jogos. Una barbaridad! Os seus conterrâneos vieram em seu socorro. O árbitro Iturralde Gorostiza e outros membros do Euzko Alderdi Jeltzalea (Partido Nacionalista Basco) resgataram-no. O tempo de cadeia mudou-o.
Saiu para a liberdade sem ter clube nem campeonato para jogar. Até ao final do conflito juntou-se a uma seleção do País Basco que viajou pelo mundo realizando jogos de exibição e recolhendo apoios financeiros para manter acesa a luta pela independência da região. Apesar de ter uma perna mais curta do que a outra, ou se calhar por isso mesmo, Lángara era imprevisível. E marcava mais e mais e mais golos. Depois da tomada de Bilbao pelos falangistas, os euskeras perderam-se juntos pelo mundo. Sempre juntos. Como uma pátria. A Pátria de que falava Fernando Aramburu, um dos grandes prosadores do nosso tempo.
Jogaram primeiro em Cuba. Depois no México. Chegaram mesmo a participar no campeonato mexicano como clube oficial de nome Euzkadi. Matavam as saudades nas longas noites em que, como abertzales, se deixavam ensimesmar ao som de músicas antigas sonhando com o regresso a casa. Depois tomaram o rumo da Argentina.
Os homens mantêm-se juntos mas raramente para sempre por mais fortes que sejam os seus laços. Ángel Zubieta Redondo e Isidro Lángara Galarraga eram amigos de sangue e de lágrimas. Foi o primeiro que convenceu o segundo que a vida ambulante da seleção do País Basco não podia durar indeterminadamente. Precisavam de assentar num lugar a que também, de alguma forma, pudessem chamar de seu. Esse lugar foi um bairro comercial de Buenos Aires de nome Almagro onde um comerciante português, Calos dos Santos Valente, foi, no século XVIII, uma espécie de patrão da maioria dos trabalhadores da área. O clube era o San Lorenzo.
Mikel Laboa, o grande cantautor basco, escreveu uma canção em 1974: Txoria Txori. Ou seja, O Pássaro é Pássaro. «Hegoak ebaki banizkio/Nierea izango zen/Ez zuen aldedingo/Bainan, honela/Ez zen gehiago txoria izango» («Se lhe tivesse cortado as asas/Ele teria sido meu/Não teria escapado/Mas assim/Teria deixado de ser pássaro»).
Não era possível impedir Lángara de ser pássaro. No San Lorenzo foi mais pássaro do que nunca: marcou 110 golos em 121 jogos e ajudanado – num linha atacante com René Pontoni e Reinaldo Martino – a transformar o clube num dos grandes da Argentina e do mundo, terminando com a hegemonia do River Plate, o clube dos ricos de Buenos Aires. Dez anos após ter sido feito prisioneiro, Isidro regressava ao seu posto: ponta-de-lança do Oviedo. Ficou duas épocas, marcadas pelos efeitos da irreversível passagem do tempo, mas ainda teve tempo de marcar mais 23 golos em 29 jogos. O golo foi, dentro da sua vida em fuga, a ideia fixa de Lángara Galagarra, O Basco, com maiúsculas. «Ene!».