Em pequenos fantasiamos com as personagens que nos são apresentadas nos filmes de animação. Imaginamos serem princesas ou príncipes, vilões ou heróis, “mergulhando” num mundo encantado que acaba por marcar os nossos primeiros anos de vida. Com o passar do tempo, os principais contos da Disney têm ganho forma humana através dos filmes conhecidos como live-action, transportando o imaginário para a realidade. Contudo, as opiniões acabam sempre por se dividir. Terá de ser o remake completamente “fiel” ao filme original? É importante que os realizadores alterem as histórias ou personagens tendo em conta a alegada falta de representatividade existente nos contos? A mais recente polémica diz respeito à princesa de cauda que vive nas profundezas do oceano e sonha um dia tornar-se humana e ter pernas para andar. Mais de três décadas depois, no sábado passado, a Disney lançou o vídeo promocional da nova versão da Pequena Sereia, que conta a história de amor da princesa Ariel e não foi preciso muito tempo até que este se tenha tornado sensação nas redes sociais, abrindo uma “guerra” entre os admiradores dos contos clássicos da empresa americana. Porquê? Porque a atriz que interpreta a protagonista, Halle Bailey, é afro-americana.
De um lado estão aqueles que aplaudem a escolha, acreditando que esse “é o caminho para uma maior inclusão e representatividade dos filmes”; de outro lado estão os que não concordam com a mudança na estética da personagem, que no filme de 1989 tem uma cor de pele branca e cabelos vermelhos.
Na plataforma Tik Tok são vários os vídeos que têm sido partilhados mostrando a reação das crianças afro-americanas ao perceberem que a Pequena Sereia tem o mesmo tom de pele que elas. “Ela é negra como eu!”, exclama uma delas, emocionada. “O tom de pele dela?”, interroga outra com as lágrimas nos olhos. Noutros, é possível observar meninas incrédulas ao perceberem a escolha da atriz. E,há mesmo aquelas que batem palmas e saltam de alegria. “No momento em que vi o trailer da Pequena Sereia, não pude conter as lágrimas. Já tinha conhecimento de que a Ariel iria ser representada pela Halle Bailey, mas a ficha só caiu quando o trailer saiu”, começou por contar ao i Clélia Esteves, aficionada da Disney. “Arrepios, orgulho, felicidade…Senti um misto de emoções! As pessoas não têm noção o quão importante é para a comunidade preta viver este momento histórico”, acrescentou. Para Clélia, desde sempre que a comunidade se sente diminuída e desvalorizada apenas pelo tom de pele. “O sonho de ter uma princesa na Disney, uma barbie ou mesmo uma boneca preta, esteve sempre longe de alcançar aos meus olhos porque cresci a pensar que os pretos nunca podiam ser retratados como belos, apenas como brutamontes”, lamentou, admitindo que sempre sentiu que “nunca se encaixaria neste mundo pela falta de representatividade dos contos”.
#Notmyariel Contudo, nem toda a gente está feliz com a escolha de Halle Bailey para o papel de protagonista. Aliás, o botão de “Não Gosto” do vídeo publicado no Youtube chegou aos 1,5 milhões, quando o botão de “Gosto” tem apenas 617 mil.
Esta interação não foi nada bem vista pela plataforma de vídeo e o YouTube resolveu mesmo omitir o número de cliques no botão de “Não Gosto”, escondendo o número de reações negativas. Além disso, inúmeros comentários e publicações negativos têm sido partilhados com a hashtag #notmyariel (em português #nãoaminhaAriel), alegando que a decisão da empresa choca com o conto de fadas da autoria de Hans Christian Andersen, publicado originalmente na Dinamarca em 1837.
“Sou contra esta e qualquer adaptação de uma história ou personagem que tenha sido escrita/criada por alguém que a pensou da maneira que pensou. Seja a personagem branca, preta, azul ou cor de rosa”, explicou ao i Filipe Duarte, admirador das produções da Disney, justificando que, para si, “a criação de personagens de qualquer raça, etnia, crença, orientação sexual, cabe aos seus criadores e não devem estar sujeitas a movimentos políticos ou de propaganda, seja de que tipo for”. “Crescemos com mais personagens baseadas em homens/mulheres brancas do que o resto da sociedade no geral. Se é certo? Obviamente que não! E é aqui que o meu argumento entra: o que deviam de fazer era pegar em autores que escrevessem histórias de origem, histórias com protagonistas negros. Histórias originais, pensadas assim mesmo. Aí sim veríamos uma aposta na representatividade”, defende o jovem de 25 anos. “Não vamos pegar no Pantera Negra, e pô-lo a ser representado por uma pessoa branca, pois não? Não faz sentido! E há muitos miúdos brancos que o têm como herói favorito. Nunca se criticou uma criança por se mascarar ou idolatrar nenhuma personagem fictícia independentemente de ter o mesmo tom de pele ou o mesmo género. Em vez de adaptarem coisas que já existem, criem e adaptem histórias com as origens certas, usem os dialetos certos. Querem fazer a Mulan um live-action, usem o diálogo em chinês com atores chineses! Isso sim mostra que apoiam e querem representatividade”, argumenta. Para si, pegar em histórias que já existem “e que sabem que vai dar dinheiro”, não é nada mais nada menos que “um disfarce para parecer bem e dizer que são inclusivos”: “Façam mais filmes como o Soul, que foi dos melhores filmes de animação que vi nos últimos anos! Jamie Fox, juntamente com todo o elenco, foi excelente a representar uma cultura! Aí vejo criatividade e representação bem feita!”, acrescentou, frisando que nunca será contra a representação de qualquer ideia, raça, religião, cultura, orientação sexual, género, “desde que o façam de forma original e com as histórias novas”.
A falta de representatividade “Por esta altura, decerto terão passado por todos os nossos feeds os vídeos virais de jovens (negras) a reagirem com júbilo ao trailer do novo filme da Pequena Sereia, um indício claro da já marcada importância da representatividade nos média para a construção da autoestima na infância”, contra-argumenta David Almeida, ativista de 24 anos. Para ele, a “controvérsia” instalou-se “manufaturada por gente crescida que parece incapaz de se contentar com a felicidade das crianças”, porque num filme sobre uma meia-mulher meio-peixe que fala com animais “é inadmissível que a mesma tenha pele negra e use rastas”. Para David, este diálogo cultural é cimentado em não-argumentos: “Desde apelos à versão original do conto (ignorando com tremenda desonestidade intelectual todas as outras alterações que a Disney faz aos clássicos que adapta), à ideia que se trata de um forçado revisionismo histórico progressista (como se a versão dos anos 80 fosse para sempre excomungada das páginas da História)”, explica, acrescentando que “críticas estas que aparentam estar curiosamente ausentes quando concernem liberdades artísticas que retratam personagens de acordo com padrões de beleza eurocêntricos, ou quando são interpretadas por pessoas brancas, como são vários os casos nos blockbusters dos universos cinemáticos de super-heróis”. “Para qualquer espetador”, continua, “esta falsa emergência não é novidade”: “Aliás, as sirenes são invariavelmente soadas sempre que anunciam novas adaptações mais inclusivas, trazendo consigo o ruído dos mesmos talking points cansados, em parte provenientes de um apego à ideia (errada) de que as questões étnico-raciais estão ultrapassadas, relíquias do século passado (o chamado antiracialismo)”, defende. Na sua visão, o mais preocupante é “a nossa dependência social da boa vontade de uma megacorporação como a Disney para podermos usufruir de boas narrativas de diversidade”: “Quando colocamos o ónus da representatividade nas empresas, arriscamos colocar o progresso social e cultural à mercê da rentabilidade. Pergunto: ‘Se não fosse hoje a diversidade (ou na verdade, a sua estética) tão lucrativa quanto é, poderíamos contar da mesma forma com a Disney para nos mostrar que nem todas as princesas são brancas?’”, interroga o jovem ativista.
Clélia vai mais longe, considerando que “as críticas negativas que o trailer tem recebido só mostram o quão racistas e preconceituosos os brancos são”. “É, sim, importante fazermos barulho! É importante que a nossa voz seja ouvida, porque estamos cansados. Porque ainda temos uma criança dentro de nós a perguntar: ‘Por que não há nenhuma princesa igual a mim?’. Uma criança preta também tem sonhos!”, exalta a jovem.
Halle Bailey já reagiu à polémica, afirmando que “este papel é algo maior” do que ela: “Sinto que estou a sonhar, estou agradecida e não posso prestar atenção à negatividade. Irá ser bonito e eu estou só feliz por fazer parte disto”, afirmou a atriz nas suas redes sociais. O filme, que começou a ser produzido em 2020, deverá estrear nos cinemas em maio de 2023.