Por todo o globo, a morte da rainha Isabel II fez manchetes. A monarca, que no caminho se cruzou com a vasta maioria dos líderes mundiais vivos nas últimas sete décadas, tornou-se o símbolo de estabilidade no Reino Unido, da recuperação após os horrores da II Guerra Mundial, durante a qual a jovem princesa se afirmara com sentidos discursos à nação. No entanto, Isabel II também passaria décadas no topo de um império decadente, que não deixou de cometer atrocidades só por se estar a desintegrar. Daí que em antigas colónias britânicas – ou seja, em boa parte do planeta, dado que o império no seu pico chegou a ter sob o seu jugo um quarto da superfície terrestre – a memória da rainha seja mais disputada.
O resultado é que, enquanto na imprensa ocidental os méritos da rainha têm sido amplamente recordados, com uma cobertura extensa das suas cerimónias fúnebres, seguindo a batuta da BBC, noutras regiões também se relembram os aspetos menos positivos. É um legado que o seu sucessor, Carlos III, terá de enfrentar, porque em muitos dos 14 países de que agora é chefe de Estado, sobretudo nas Caraíbas, o debate sobre o fim da monarquia é cada vez mais intenso.
É que, até há relativamente pouco tempo, «a monarquia envolveu-se a si mesma no império, usando os seus símbolos, as suas imagens e linguagem familiar», explicou Caroline Elkins, historiadora da Universidade de Harvard, em entrevista à Vox. A coroa britânica criou um «sentido de benevolência imperial, que flui desta monarca», relembrou. Outros argumentam que Isabel II não pode ser pessoalmente responsabilizada, dado não deter poder executivo enquanto monarca constitucional. Aliás, Elkins nunca encontrou «absolutamente nenhuma prova documental que a ligue a conhecimento da violência sistemática e encobrimento pelo império», ressalva a historiadora. Contudo, parece implausível que uma monarca «conhecida pelo seu conhecimento incrível quanto a política estrangeira de facto estivesse completamente às escuras».
De uma mãe para outra
No que toca a Evelyn Kimathi, uma queniana de 51 anos, esse tempos de império podiam ter sido ontem, assegurou ao Washington Post. Ainda assim, o falecimento de Isabel II, com uns vetustos 96 anos, foi recebido com empatia pela família Kimathi, reconhecendo que a perda de um ente querido é sempre dolorosa. Daí que Evelyn não perdoe a execução do seu pai, Dedan Kimathi, líder militar e espiritual da revolta dos Mau-Mau, que exigiam a independência do chamado Quénia britânico. A repressão desta rebelião – os militares britânicos mataram, torturaram ou mutilaram cerca de 90 mil quenianos entre 1952 e 1960, apurou a Comissão de Direitos Humanos do Quénia, sendo que somente 32 colonos foram mortos – é vista como a mais brutal atrocidade do império durante o reinado de Isabel II.
Entre 160 mil a 320 mil kikuyu, a etnia da maioria dos combatentes Mau-Mau, foram colocados em campos de concentração, cercados por arame farpado, trincheiras e torres de vigia, relatou Elkins no seu livro Britain’s Gulag: The Brutal End of Empire in Kenya (Pimlico, 2005). Civis, incluindo mulheres e crianças, foram sujeitos a trabalhos forçados, epidemias, fome, tortura, violação e homicídio.
Londres estava desesperada para manter controlo do Quénia, tendo as suas plantações de chá – tão típico do estilo de vida britânico – e café virado a joia da coroa do império, após a perda do Raj na Índia, em 1947. Mas dificilmente se pode ver a crítica ao horror no Quénia como sendo uma leitura anacronistica da história. Mesmo à época, uma deputada trabalhista, Barbara Castle, baronesa de Blackburn e futura ministra, apontava o dedo às atitudes «nazis» da administração britânica quanto aos kikuyu, após visitar o Quénia em 1952, no mesmo ano que Isabel II subia ao trono.
Evelyn Kimathi não esquece como soldados britânicos torturaram a sua mãe. Enforcando o seu pai, então acusado de terrorismo, hoje herói nacional do Quénia. Ou como as muitas cartas enviadas pela mãe à rainha, implorando ajuda para encontrar a campa do marido, de maneira poder dar-lhe um enterro condigno, foram categoricamente ignoradas. «Ela era uma mulher, uma mãe e esposa», recordou amargamente Evelyn. «Ela poderia ter mostrado misericórdia a outra mulher e esposa», lamentou.
Velório de 11 dias
É muito difícil conciliar estas histórias com a imagem de humildade, serviço e humanidade construída em torno Isabel II. Esta admiração que levou uma multidão de britânicos a expressar as suas condolências, fazendo uma fila gigantesca – provavelmente a maior alguma vez vista em Londres, escreveu a Associated Press, estendendo-se por 16km desde o Parlamento, através da ponte Lambeth, chegando à outra margem do Tamisa – para se despedir, na quarta-feira. Aqueles que se juntaram na fila foram recebendo pulseiras, para conseguirem ir comer ou usar a casa de banho, tendo sido avisados que poderão estar horas à esperam, sendo a segurança assegurada por um enorme aparato policial, com mais de mil agentes.
Tratava-se do primeiro dos quatro dias de vigília, em que o caixão da monarca britânica estará exposto aos seus súbditos no Palácio de Westminster, rodeado por uma guarda de honra. O caixão foi envolto com o estandarte real, tendo sobre uma flores e ramos de pinheiro, trazidos do seu lugar favorito no mundo, o castelo de Balmoral, nas Terras Altas da Escócia, onde a rainha viria a falecer.
Sobre o caixão foi também colocada uma almofada de veludo com a coroa. Este artefacto, feito por encomenda de George V, em 1937, inclui uma safira que, diz a lenda, terá sido encontrada em 1163 na tumba de Eduardo o Confessor, último rei anglo-saxónico de Inglaterra, morto pelos antepassados normandos de Isabel II na batalha de Hastings.
A coroa brilha com 2901 pedras preciosas, incluindo parte da Grande Estrela de África, o maior diamante em bruto alguma vez encontrado, com 3106 quilates, retirado de uma mina propriedade de colonos na África do Sul, em 1905, e oferecido pela administração colonial à família real. Há muito que este diamante, avaliado no equivalente a mais de 400 milhões de euros, é alvo de polémica e pedidos do Governo sul-africano para que seja devolvido, até agora ignorados. O mesmo se sucede quanto ao diamante Koh-i-noor, ou ‘montanha de luz’, minado no sul da Índia, algures no séc. XXII.
Reza a lenda que este diamante, um dos maiores diamantes lapidados do planeta, com 105.6 quilates, terá servido como olho do ídolo da deusa Kali num templo hindu em Warangal, antes de ser obtido por Babur, o fundador do império mogol, ornamentando o Trono Pavão, a partir do qual esta dinastia muçulmana governou o que hoje é a Índia e Paquistão. Pelo meio pensa-se que tenha sido roubado pelo império durrani, do Afeganistão, e recuperado pelos indianos. O certo é que o Koh-i-noor foi parar ao Punjab, sendo retirado ao jovem marajá Duleep Singh, então com apenas dez anos, em 1849, depois dos seus domínios serem invadidos pela Companhia Britânica das Índias Orientais, acabando entregue à rainha Vitória.
Apesar do Koh-i-noor, ter ganho fama de estar amaldiçoado, sendo conhecido como o diamante mais sangrento do mundo, deverá vê-lo em público em breve, encastrado na coroa da Rainha-Mãe. É esperado que seja usada por Camila na sua coroação como rainha consorte de Carlos III. Talvez não seja bom auspício, tendo em conta os receios quanto à impopularidade da nova rainha. Durante décadas, Camila foi associada a alegações de infidelidade do então príncipe de Gales, tornadas ainda mais polémicas pela trágico morte da ex-mulher deste, a princesa Diana.
Vida e coroação
Não é fácil evitar perdemo-nos na história da casa real quando falamos da vida de Isabel II. Mas voltemos a esta. A rainha, nascida em Londres, a 21 de abril de 1926, e batizada de Elizabeth Alexandra Mary Windsor, cresceu sem sonhar que eventualmente chegaria ao trono. Afinal, era filha de Alberto, duque de Iorque, segundo filho do rei George V.
Este monarca, conhecido como tendo uma personalidade disciplinada, sempre se mostrou algo receoso com o estilo de vida do seu herdeiro, que daria pelo nome de Eduardo III. Este era visto como playboy, envolvendo-se em sucessivos casos amorosos. Dizia-se que, como tal, George V sempre teve preferência por Alberto, considerando-se a jovem Isabel a sua neta favorita. Aliás, quando o tio da futura rainha ascendeu ao trono, seriam essas suas tendências românticas que o derrubariam, causando escândalo ao querer casar com uma americana divorciada, acabando por ser obrigado a abdicar. O pai de Isabel, que escolheu o nome George VI, morreria cedo, com apenas 57 anos, tendo sempre sofrido de uma saúde frágil.
A sua filha, então com 25 anos, soube da morte do pai quando estava com o seu marido, o príncipe Filipe, numa visita de Estado ao Quénia, onde fermentava a revolta dos Mau-Mau. A princesa herdeira já há anos que se vinha a preparar para subir ao trono, tomando um papel mais público aos 14 anos, fazendo um discurso dirigido às crianças britânica que tiveram de fugir das cidades, para escapar ao Blitz, os bombardeamentos massivos dos nazis durante a II Guerra Mundial. «Voltaremos a ver-nos», prometeu Isabel, que aos 16 anos recebera o posto de coronel honorária do regimento dos Guardas Granadeiros e treinada na reparação de veículos militares. Surgiria de uniforme, sorrindo orgulhosa, no meio de Londres durante as enormes celebrações da vitória dos aliados.
A coroação de Isabel II seria recebida com euforia. Os britânicos estavam tão ansiosos por assistir às cerimónias que historiadores atribuem a isso um impulso decisivo na entrada das televisões nas casa dos britânicos, registando-se um pico nas compras destes aparelhos, relativamente recentes. Isabel II seria a primeira monarca televisiva, sabendo usar esta tecnologia para construir uma imagem de proximidade com o público. Ao mesmo tempo conseguia resistir a diminuir a ostentação da família real, lembrou a Foreign Policy, ao contrário do que fizeram outras monarquias europeias, receosas que ver isso pudesse cair mal entre o público.
Os membros da realeza britânica «continuaram a viver um esplendor de conto de fadas nos seus muitos palácios e castelos, aparecendo em ocasiões públicas coreografadas, como casamentos e na abertura do Parlamento com um uma pompa sem paralelo em qualquer monarquia do mundo moderno», salientou a revista americana. «Em vez de a alienar das pessoas, a distância e dignidade da Rainha ajudou a preservar a mística em que a monarquia se alicerça».
Isabel II passou as décadas seguintes desdobrando-se em inaugurações, receções a dignitários estrangeiros e visitas de Estado, enquanto o seu império se desintegrava. Não que todas estas cerimónias de gala fossem livres de risco. A rainha britânica chegaria a ser alvo de uma tentativa de assassinato à bomba pelo Exército Republicano Irlandês (IRA), quatro dias antes do papa João Paulo II ser baleado.
A conspiração deu-se em 1981, no jubileu de prata da rainha, quando esta inaugurava um terminal petrolífero da BP nas pacatas ilhas Shetland, um dos mais remotos cantos do Reino Unido, à beira do mar do Norte. Enquanto uma banda tocava o hino nacional e Isabel II se preparava para discursar perante 700 pessoas, não fazia ideia que uma bomba-relógio estava pronta a explodir a uns meros 500 metros de distância.
É que, entre os seis mil trabalhadores deste projeto, avaliado à época em 1,2 mil milhões de libras, estava um membro do IRA, disfarçado, que recebera um pacote de 7kg de dinamite por correio. Contudo, a sua bomba, que estava mal montada, só explodiu parcialmente, evitando vítimas, recordou o Daily Record. Contudo, ficou o susto. Afinal, ainda dois anos antes o IRA assassinara à bomba o próprio primo de Isabel II, Lord Louis Mountbatten, junto com os sobrinhos-netos desta, Nicholas e Paul Maxwell, com 14 e 15 anos.
Diga-se o que se disser da monarquia britânica ou da rainha, talvez nenhum momento tenha mostrado a capacidade desta em estabelecer pontes como o aperto de mão que deu a Martin McGuinness, histórico comandante do IRA, 14 anos depois. Isabel II não hesitou em cumprimentá-lo, 14 anos depois, em Belfast, sorrindo até, num símbolo da paz na Irlanda, alcançada pelo Acordo da Sexta-feira Santa.