Se há um nome que não passa despercebido é o seu. Podemos nunca ter visto um dos seus filmes. Contudo, é muito difícil que alguém nunca tenha ouvido falar sobre si, quer pela genialidade das suas obras, quer pela “escuridão” que tem pairado sobre a sua vida pessoal, depois de ter sido acusado de abusos sexuais nos anos 90. “Este ano sou uma estrela, mas o que vou ser no próximo ano? Um buraco negro?”, interrogou aquele que foi um dos realizadores mais celebrados e controversos do último meio século, a dada altura da sua carreira marcada pela realização de já 50 filmes.
E a verdade é que todas as acusações de que tem sido alvo ao longo do tempo, acabaram precisamente por arrastá-lo até a um “lugar pouco iluminado”. Apesar disso, o realizador norte-americano não deixou de trabalhar e, recentemente, voltou a estar nas “bocas do mundo”, depois de se ter espalhado a notícia de que este se reformaria brevemente do mundo do cinema. O responsável? La Vanguardia, que, no último domingo, noticiou que o cineasta de 86 anos estaria pronto para encerrar a carreira como realizador com seu 50.º filme, intitulado Wasp 22. “A minha ideia, em princípio, é parar de fazer filmes e concentrar-me em escrever romances”, foi a frase repercutida depois em muitos meios de comunicação.
Uma reforma forçada? De acordo com o jornal espanhol, o também ator e escritor, revelou que havia chegado o tempo de se dedicar à escrita e aos livros. “Provavelmente farei pelo menos mais um filme, mas muita da emoção desapareceu porque já não há todo aquele efeito cinematográfico”, explicou o realizador, acrescentando que, “quando se filmava, o filme ia para cinemas por todo o país e as pessoas iam às centenas para o ver em grandes grupos no grande ecrã”. “Agora, fazes um filme e ficas umas semanas num cinema – talvez seis semanas, duas semanas, o que seja – e depois vai diretamente para o streaming ou para o Pay-Per-View”. Portanto, não é tão agradável para mim como era. Não tenho o mesmo gozo de fazer um filme e colocá-lo num cinema”, reforçou.
Já em junho deste ano Woody Allen o havia mencionado, numa entrevista na página de Instagram do ator Alec Baldwin. Nessa altura, o artista partilhou que só faria “mais um ou dois filmes”, uma vez que já tinha perdido a emoção e que fazer filmes “já não é divertido”: “Não tenho a mesma diversão ao fazer um filme e colocá-lo num cinema. Era uma sensação agradável saber que 500 pessoas o estavam a ver ao mesmo tempo. Não sei como me sinto sobre fazer filmes. Vou fazer mais um e depois logo vejo como me sinto”, acrescentava o vencedor de quatro Óscares, pela realização e argumento de Annie Hall, em 1977, e ainda pelos argumentos de Ana e as Suas Irmãs, em 1986, e Meia-Noite em Paris, em 2010.
Apesar dessas e das mais recentes declarações, não foi preciso mais de um dia até Woody Allen vir desmentir a reforma. Na segunda-feira, o realizador viu-se “obrigado” a esclarecer que as notícias resultaram apenas da interpretação das declarações na entrevista ao La Vanguardia. O comunicado partilhado nas suas redes sociais, esclarece que “Woody Allen nunca disse que se estava a reformar, nem disse que estava a escrever outro livro”: “Ele disse que estava a pensar em não fazer filmes pois fazer filmes que vão direta ou muito rapidamente para as plataformas de streaming não é tão agradável para ele, já que é um grande apaixonado pela experiência das salas de cinema”, continua o texto, concluindo que “atualmente, ele não tem intenção de se reformar e está muito entusiasmado por estar em Paris a rodar o seu novo filme, que será o 50.º”. Allen começou este mês em Paris a produção do 50.º filme, cujo título, que pode ser provisório, é Wasp 22. O La Vanguardia também o citou dizendo que este seria “semelhante” ao seu filme, Ponto Final, de 2005, e seria “emocionante, dramático e também sinistro”. Até agora, não existem informações sobre o enredo ou o elenco, apesar de já circulem rumores sobre um possível envolvimento da atriz francesa Isabelle Huppert.
O cancelamento do génio Segundo anunciado em junho, pelo World of Reel, houve um atraso na produção após o casting “ter demorado mais tempo do que o esperado”. E, apesar de não ter sido indicada nenhuma razão, é possível que esta esteja relacionada com o “cancelamento” do realizador nos EUA: em 1992, Allen foi acusado de ter abusado sexualmente da sua filha adotiva Dylan Farrow e apesar dos processos terem sido arquivados após duas investigações em separado, a sua imagem acabou por piorar depois desta ter renovado as acusações no início de 2018, após o surgimento do movimento #MeToo. De acordo com um artigo do The Wrap, publicado em fevereiro de 2021, haveria um “consenso” em Hollywood de que o também ator se tinha tornado “demasiado radioativo” e “teria de encontrar financiamento para os filmes junto de investidores europeus para o resto da sua vida”. Além disso, a mesma publicação, também referia que este teria de convencer atores de renome no mercado americano a trabalhar consigo.
E, a prova disso, é que o realizador acabou mesmo por ver as suas últimas obras – Um dia de chuva em Nova Iorque, de 2018, e O Festival do Amor, de 2020 – com uma distribuição muito limitada nos EUA. Outras celebridades de Hollywood, tomaram a decisão de se afastar do realizador, como foi o caso de Kate Winslet, que protagonizou o filme Roda Gigante, de 2017. Em setembro de 2020, numa entrevista à Vanity Fair, que contou com vários sinais de irritação (pelos palavrões utilizados), a atriz disse não perceber como é que ela e o mundo do cinema apoiaram os dois cineastas (referindo-se também a Roman Polanskim, condenado por violação de uma jovem de 13 anos em 1977). “É do género, o que é que eu estava a fazer a trabalhar com Woody Allen e Roman Polanski? Agora é para mim inacreditável como é que estes homens foram tidos em tão elevada consideração, de forma tão ampla na indústria cinematográfica e durante tanto tempo. É uma desgraça”, lamentou, acrescentando que, ficou claro para si que, ao não dizer nada, poderia estar a “causar angústia em muitas mulheres e homens corajosos”. “O abuso sexual é um crime”, rematou. Da mesma forma, devido a todas estas estas polémicas, em fevereiro de 2019, a Amazon desistiu de um acordo de produção e distribuição de quatro dos seus filmes e recusou-se ainda a distribuir a sua obra cinematográfica
Um dia Chuvoso em Nova Iorque. A casa Hachette Book Group, empenhada nas suas memórias A propósito de nada, autobiografia lançada em 2020, cancelou a edição depois dos funcionários da editora deixarem os escritórios para integrar uma marcha de solidariedade para com Dylan Farrow e sobreviventes de abusos sexuais.
Em suma, a despedida de Allen pode estar próxima, mas não iminente. E, ao que parece, nem a sua genialidade conseguiu proteger o seu nome.