Ninguém se esquecerá das exéquias de Isabel II, como também nunca ninguém se esqueceu das da Rainha Vitória. Mas há funerais e funerais e funerais. E o da Rainha Ana, no dia 24 de Agosto de 1714, na Abadia de Westminster, foi um daqueles que os britânicos gostariam de ter esquecido. Ana, sucessora da única dupla de reis da História de Inglaterra, Guilherme III e Maria II, e por via do Union Act veio a ser primeira soberana do Reino Unido, sendo também a última da dinastia Stuart, nasceu no dia 6 de Fevereiro de 1665, às 11h39, segundo os registos, no Palácio de St. James, em Londres, quarto filho e segunda filha do Duque de York – que seria Jaime IV de Inglaterra e II de Inglaterra e Escócia – com a sua segunda esposa, Anne Hyde. Foi-lhe detetada muito cedo uma ambliopia aguda. Não seria poupada pelas doenças até morrer, sobretudo após o seu 45º aniversário quando começou a sofrer transformações verdadeiramente bizarras que viriam a ter um fim horrendo no dia 1 de Agosto de 1714, o da sua morte.
Esta crónica é, na verdade, duas: a de Ana, rainha, e a do seu médico particular, o Dr. John Arbuthnot, uma personagem ímpar da história da Grande Ilha, o inventor de John Bull que, assim para facilitar a conversa, é o Zé Povinho dos ingleses. Mas já lá iremos.
Ana foi, desde pequena, assim, como direi?, um bocado lerda. Por causa disso cedo se deixou influenciar pela sua dama de companhia, uma tal de Saraj Jennings Churchill, mulher de John Churchill, 1º Duque de Malborough. Os Churchills sempre foram danados para assumir ou rodear o poder. E, desta forma, não tardou a correr o boato que quem governava, de facto, o reino, era Sarah e não Ana. Haveria muito a escrever sobre o reinado de Ana, mas seria preciso dispor de mais uma boa meia-dúzia de páginas e não me atrevi a requisitá-las ao Director. O que aqui me traz é, sobretudo a sua morte, já que vem a propósito de toda a Inglaterra estar de luto.
Já vimos que a saúde da Rainha Ana foi periclitante desde a nascença e as suas dezoito gravidezes (das quais só cinco foram até ao fim) não ajudaram a manter uma figura elegante. A sua morte, vitimada por uma invasão de estreptococos nos vasos linfáticos e uma erisipela que a inchou tão desmesuradamente que teve de ser sepultada num caixão quadrado, praticamente com o dobro do tamanho de uma urna vulgar, foi tão nojenta como dolorosa. Desde 1713 que se tornou paralítica da cintura para baixo, as pernas parecendo balões carregados de varizes, e sofria frequentes perdas de sentidos que podiam durar horas e até dias inteiros. Não tendo sido nenhum exemplo de beleza e graça femininas, tinha vergonha do seu corpo e raramente se apresentava em público. O Dr. John Arbuthnot velou por ela até a entregar a entidade divina responsável por a libertar da tamanho inferno na Terra, não sendo certo que não a tenha encafuado noutro inferno qualquer e, se calhar, até pior. A sua grande amiga Sarah Churchill comentou viperinamente após a sua morte: «Tinha boas intenções e não era tola de todo, mas ninguém pode dizer que fosse sensata ou tivesse qualquer tipo de conversa com o mínimo de interesse. Era ignorante em relação a todos os assuntos, excepto a algumas coisas que aprendeu durante a infância. E, sendo tão ignorante e cheia de medos, rodeada por gente sem escrúpulos, foi facilmente ludibriada e perdeu por completo o seu sentido de honra». A cabra!
Mas alguém precisa de amigas deste calibre? Shame on you mrs. Churchill!
A Inglaterra não verteu lágrimas de desconsolo pela morte desta sua meio apatetada rainha e seguiu a sua vida sob uma nova casa monárquica, a de Hanover, já que a sua sucessora Stuart, Sofia, morreu dois meses antes dela e a candidatura do meio-irmão de Ana, James Francis Edward Stuart foi pura e simplesmente ignorada.
O extraordinário Dr. Arbuthnot
Saltemos da vida de Ana, a rainha que estabeleceu o estilo arrebicado de casas e de mobiliário a que se chama de Queen Anne, para a do seu esculápio, o extraordinário Dr. Arbuthnot que, pelas sete e meia da manhã do dia 1 de Agosto de 1714, depois de ter assinado o óbito, escreveu ao seu amigo e escritor Jonathan Swift: «I believe sleep was never more welcome to a weary traveller than death was to her». Começando por John Bull!
John Bull é a personificação da Inglaterra. E, assim sendo, George Bernard Shaw, que não desperdiçava a oportunidade para fazer humor, utilizou-o amiúde. Barrigudo, de colete e chapéu alto, John Bull é um yeoman, aquilo que na terra da glorious mud se entende por um pequeno proprietário, esforçado e diligente. Bem intencionado, sem ambições, devotado mais à sua cerveja do que a um sentido de heroísmo, tem servido para ridicularizar um determinado tipo de inglês, o que dá muito jeito a um determinado tipo de irlandês.
O pai de John Bull foi o outro John, o nosso Dr. John Arbuthnot, um famoso médico e escritor que impulsionou Jonathan Swift, seu companheiro no Scriblerus Club, fundado pelo imaginário Scribelus, a escrever o famoso Travels into Several Remote Nations of the World, in Four Parts. By Lemuel Gulliver, First a Surgeon, and then a Captain of Several Ships. Swift também era irlandês e a primeira versão das viagens de Gulliver parece que tinham algumas frases pouco abonatórias para a Rainha Ana, embora disfarçadas em críticas aos soberanos de Laputa, Balnibarbi, Glubbdubdrib, Luggnagg e Japão.
A ironia também não era, de forma alguma, alheia ao espírito do Dr. Arbuthnot. Nascido, não por acaso, na Escócia, vivia no pavor que viessem a escrever a sua biografia: «As biografias são o novo terror da morte». Por isso destruía conscienciosamente tudo o que pudesse deixar aos vindouros a perversa possibilidade de escreverem sobre ele. No entanto a sua lista de títulos publicados é francamente devastadora: An Argument for Divine Providence, Taken From the Constant Regularity Observed in the Births of Both Sexes, ou Proposals for Printing a Very Curious Discourse… a Teatrise of the Art of Political Lying, with an Abstract of the First Volume, são bons exemplos do que falo.
O Dr. John Arbuthnot tornou-se médico da coroa no reinado da Rainha Ana que, para além da carga de trabalhos que forneceu ao pobre doutor nos seus últimos tempos de vida, resolveu deixá-lo igualmente com o encargo de cuidar de Peter the Wild Boy quando este chegou a Londres vindo dos seus bosques de Hamelin, perto de Hanover. Encontrado no mato, deslocando-se de quatro patas, Peter era um rapazinho que se limitava a grunhir e a comportar-se como qualquer animal que seja digno desse nome. A sua chegada a Inglaterra foi um sucesso, rodeada de um esfusiante entusiasmo popular, o que valeu nova sátira do trocista Swift: «The Most Wonderful Wonder that Ever Appeared to the Wonder of the British Nation». Mais saudável do que o seu médico e tutor, Peter the Wild Boy sobreviveu a Arbuthnot em 40 anos. Embora de gatas. Literalmente.
Sequelas de um estilo
Um dos muitos herdeiros do estilo irónico de escrita levada a cabo por John Arbuthnot e por Jonathan Swift foi, indiscutivelmente, o viperino George Bernard Shaw. Autor do famoso Pygmalion.
Recordam-se, certamente, da história, passada ao cinema em My Fair Lady. Henry Higgins, professor de fonética, aposta com o seu amigo, o coronel Pickering, que conseguirá fazer com que uma vulgar florista, de sotaque cockney, Eliza Doolitle, passe por uma senhora da alta sociedade ensinando-lhe um upper class accent. Lembro-me de Rex Harrison na tela do Cinema Europa obrigando Audrey Hepburn a recitar: «The rain in Spain falls mainly in the plain…».
Mas quando subiu pela primeira vez ao palco, a tirada de Eliza, que chocou a nessa altura eduardiana plateia, foi uma imprecação: «Not bloody likely!»
Muito cockney, I’m affraid.
Winston Churchill, cuja parente Sarah tão pouco nobremente tinha caracterizado a sua grande amiga Rainha Ana, não assistiu à estreia. Uns dias antes, Bernard Shaw, que não morria de amores por ele, enviou-lhe dois bilhetes com um cartão: «Mando-lhe dois convites para o caso de querer trazer um amigo; isto é, se tiver algum». Churchill respondeu com outro cartão: «Lamento não poder estar presente. Gostaria de ter bilhetes para uma próxima sessão; isto é, se houver outra».
Muito upper class, I’m affraid.
É por estas e por outras que, em Inglaterra, os sotaques distinguem mais as classes dos que as regiões.
O cockney accent, por exemplo, tem aquele terrível toque do H mudo que é tão característico das classes baixas. O T gutural, o R labiodental e a queda de letras no meio das palavras, faz com que nem sempre as informações que nos são dadas nas ruas de Londres por algum simpático habitante local, isto é, se houver algum, mereçam total crédito. Hyde Park transforma-se em Hy’Par’, Clapham em Cla’am, Leicester Square em L’ester Squa’ e Beauchamp Place em Bitcham Pliz. O me substitui o my; o that’s passa a at’s; isn’t, are not ou have not são pura e simplesmente iguais a ain’t.
O cockney é orgulhoso. É londrino da classe trabalhadora, sobretudo do East End, embora conte a lenda que cockney é aquele que nasce ao som dos Bow Bells, os sinos da igreja de St. Mary-le-Bow, em Cheapside, que não é bem no East End. Tão orgulhoso é o cockney que existe mesmo o Cockney Pride que, aqui em Portugal, poderia muito bem ser o Orgulho Saloio.
Procurando a origem do termo cockney, podemos entender o tal orgulho. Das várias e pouco convincentes teorias, escolho esta: estando um londrino nos arredores da cidade e ouvindo um cavalo relinchar, exclamou: «Lord! Como ri esse cavalo». Eis que alguém lhe explica, pacientemente, que um cavalo não ri (verbo to laugh) mas relincha (verbo to neigh). Com a lição bem fresca na memória, o mesmo londrino ouvindo o galo cantar pela manhã, perguntou: «Do you ear how the cock neighs?»
Rigorosos como só os ingleses sabem ser, eis que avançam com um estudo preciso sobre até que distância são audíveis os Bow Bells. E chegou-se, então, à conclusão que sendo todos os East Enders cockneys, nem todos os cockneys são East Enders. De onde se poderiam assumir como puros cockneys todos os que nasceram nos bairros de Bethnal Green, Whitechapel, Spitalfields, Stepney, Wapping, Limehouse, Poplar, Millwall, Hackney, Shoreditch, Bow e Mile End (no East End); East Ham, Stratford, West Ham e Plaistow (fora do East End).
Há que não fazer confusões entre esta St. Mary-le-Bow, mãe dos cockneys, e Marylebone, à qual os cockneys chamam de Marribun, graças aos seu accent tão especial. Nesta área que pertence à City of Westminster viveram três dos mais famosos scousers (naturais de Liverpool) de Inglaterra, Jonh Lennon, Paul McCartney e Ringo Starr, e o ainda mais famoso Sherlock Holmes, ali mesmo no nº 221 B de Baker Street. Também para o termo scouse, uma breve investigação conduz-nos por diversas vielas. Há quem afirme que vem de lobscouse, uma mistela guisada que servia de prato de resistência aos marinheiros de outrora; e há quem garanta que existiu, em tempos idos, um gigante em Merseyside que acudia pelo nome de Jon Scouse. Se este Jon Scouse é ou não simples figura de ficção, não há quem o garanta convictamente. Mas a verdade é que, a despeito da autenticidade da Baker Street, onde Madame Tussaud teve o seu primeiro museu de cera e os Beatles a sua célebre Apple Boutique, o nº 221 B nunca existiu e Sherlock Holmes ainda suscita dúvidas. No tempo em que Arthur Conan Doyle era vivo, Baker Street acabava no nº 100; quando começou a crescer, o 221 passou a ser parte de um só edifício, que englobava desde o 219 ao 229, sem passar por qualquer tipo de B. A existência deste filho de um inglês teimosamente embriagado e de uma irlandesa cujo único currículo, ao que consta, foi tê-lo dado à luz numa tarde de chuva em Edimburgo, está certamente comprovada. Até porque defendeu com brio e pertinácia as balizas do Portsmouth Association Football Club antes de resolver tornar-se oftalmologista e baralhar os seus leitores com as proezas dedutivas do seu cocainado detective. E, desta forma, por via do mais bizarro enterro de todas as rainhas de Inglaterra, demos um passeio pela história desse país que é irresistivelmente fascinante. Ana podia ser lerda, mas valia uma suculenta crónica.