A albufeira Mar Menor, na costa sudeste de Espanha, ganhou o estatuto de personalidade jurídica, após uma decisão do Governo espanhol que não é inédita – pelo menos no mundo, sendo-o, efetivamente, em Espanha.
A decisão resultou de uma iniciativa de cidadãos espanhóis, que juntaram cerca de 600 mil signatários para dar respaldo legal a esta que é a maior lagoa costeira da Europa, e que, segundo ecologistas citados pela agência Associated Press, tem sofrido extinções em massa da vida marinha devido a danos causados pelo desenvolvimento costeiro local e pela sobre-exploração agrícola. Alguns cientistas consideram, aliás, que o principal fator responsável pela falta de oxigénio nesta lagoa é a chegada de centenas de toneladas de nitratos de fertilizantes procedentes da agricultura intensiva. Durante anos, ecologistas e cidadãos denunciaram a morte lenta do ecossistema da lagoa. Em 2019, mais de 50 mil pessoas marcharam na cidade vizinha de Cartagena para denunciar a degradação da lagoa na costa sudeste da Espanha. Este mês, o Executivo espanhol aprovou um pacote de 20 milhões de euros em ajudas para melhorar o tratamento de água em cidades próximas ao Mar Menor como parte de um plano de recuperação. “Para que desastres naturais como os que ocorreram, para que os episódios de mortalidade da fauna do Mar Menor não voltem, vamos dar a este ecossistema seus próprios direitos”, disse a senadora María Moreno antes da votação.
Agora, uma vez tomada esta decisão, um total de 1.600 quilómetros quadrados (994 milhas quadradas) da lagoa e da faixa costeira mediterrânica que a delimita serão legalmente representados por um grupo de zeladores, mais especificamente por um Comité de Representantes, uma Comissão de Acompanhamento e um Comité Científico. Deles fazem parte autoridades locais, cidadãos e cientistas que trabalham na área, promovendo o mesmo grupo a medida na busca de melhorar a capacidade de defender essa albufeira de água salgada de uma maior degradação.
Com a personalidade jurídica, aliás, a lagoa passa a gozar de direitos como existência e evolução natural, conservação, ou restauração.
Nova zelândia inovadora Se bem que é a primeira vez que uma medida destas é tomada em Espanha, a definição de uma formação natural como personalidade jurídica não é inédita.
Em 2017, na Nova Zelândia, o rio Whanganui, o terceiro mais longo deste país da Oceânia, ganhou este estatuto. O Parlamento neozelandês optou por tomar esta decisão inédita com base na “conexão profundamente espiritual entre o iwi (tribo) Whanganui e seu rio ancestral”, declarou, na altura, o ministro da Justiça, Chris Finlayson.
Segundo a lei, o rio passou a ser considerado um ser vivo único que vai “das montanhas ao mar, incorporando seus afluentes e todos os seus componentes físicos e metafísicos”, o que significa que os seus interesses passaram a poder ser defendidos em procedimentos judiciais por um advogado da tribo e outro do Governo.
“O Mar Menor tornou-se o primeiro ecossistema europeu com direitos próprios depois de o Senado aprovar o projeto de lei para dotá-lo de identidade legal”, comemorou o presidente da Câmara Alta espanhola, Ander Gil, na sua conta no Twitter.
Eficácia “Sob o ponto de vista da “grelha de leitura” ocidental, considerar um rio, uma floresta, uma árvore, um animal ou uma montanha como um sujeito jurídico titular de direitos com uma esfera jurídica própria, mesmo que com algumas limitações, é no mínimo estranho”, escreve Paulo Magalhães, jurista ligado à associação ecologista ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável (que cofundou em 2016), num artigo de opinião publicado na plataforma Forum Demo. Sobre o caso da Nova Zelândia, diz tratar-se do “reconhecimento da existência de novas esferas jurídicas autónomas aos bens que os indígenas consideravam como sagrados, isto é, reconhecendo-os autênticos novos sujeitos de direito, personificando sob um ponto de vista jurídico, rios ou montanhas, ficando a rainha de Inglaterra como a guardiã e o garante da proteção dessas novas entidades jurídicas”. “Podemos dizer que neste caso terá havido uma “indigenização” da cultura jurídica ocidental”, remata Paulo Magalhães, considerando que “a diferença fundamental entre estas conceções, é que a visão ocidental ao “coisificar” o bem natural, isola-o, retira-lhe o contexto e a sua função no todo maior, enquanto que a visão indígena integra, perceciona o valor do bem natural no seu contexto e nas suas funções globais, isto é, identifica o valor daquele bem em concreto no contexto do sistema a que pertence, e de que é parte”.
Neste contexto, “muito mais do que discutir a legitimidade da atribuição de direitos a entidades que não possuem capacidades próprias para os exercer nos sistemas jurídicos humanos, e que por isso dependem sempre de uma vontade humana para o realizar, parece que, mais uma vez, o que aqui está em causa será a regulação das relações entre seres humanos, entre povos”, argumenta o jurista, defendendo que o critério mais objetivo para avaliar a opção de personificação de entes naturais é o da “eficácia, isto é, se esta solução produziu realmente os desejados efeitos de proteção daqueles bens”.