Há mais de cem anos (cento e um em dezembro, mais precisamente), quando Portugal e Espanha se defrontaram pela primeira vez, em Madrid, naquela que foi a estreia absoluta da seleção nacional, os jornalistas espanhóis chamavam à sua equipa Fúria. Pelo estilo bélico do seu jogo, pela garra que punham em campo, pela luta contínua pela bola e pelo melhor resultado possível. Além disso soava a Fiesta e a touros e a essa guerra ancestral entre o touro e o homem. Responderam, mais tarde, timidamente, os homens da imprensa portuguesa com um apodo meio insonso para a sua representação nacional: Alma. Percebe-se, claro! Contra a voluntariedade dos espanhóis, havia que ir buscar ao fundo da alma as forças e a coragem para lhes fazer frente. Não chegou. Ao longo dos anos e décadas, as vitórias de Espanha foram muitas e pouquíssimas as de Portugal ao ponto de termos, até hoje, apenas um triunfo oficial, na fase final do Europeu de 2004, em Alvalade, na fase de grupos, por 1-0, golo de Nuno Gomes. E por aí nos ficamos, adormecidos numa mediocridade que procuramos disfarçar com os empates obtidos em França (Euro-84), Ucrânia (Euro-2012, em seguida perdendo nas grandes penalidades) ou na Rússia (Mundial-2018). Pois convenhamos e concordemos: neste momento um empate também serve e terá o sabor de uma vitória. Depois de ganhar em Praga (4-0) e ter visto à distância a Espanha ser batida em casa pela Suíça (1-2), transformando o ponto de atraso em relação aos espanhóis em dois pontos de avanço a seu favor, Fernando Santos não terá deixado se sentir algum alívio – talvez o mesmo que sentiu quando, há ano e pouco, ficou a saber que a Macedónia do Norte tinha afastado a Itália do play-off contra Portugal e que dava acesso à fase final do Campeonato do Mundo deste ano, no Qatar.
As situações inverteram-se, assim, por completo. Se há uns dias partíamos do princípio que só se atingiria a fase final da Liga das Nações batendo a Fúria, agora será a Fúria, a autêntica Fúria, que precisa de ir a Braga puxar dos tais pergaminhos que dizem que bater a Espanha em confrontos oficiais é tarefa quase impossível. E de Praga a Braga, vamos e venhamos, basta não estragar tudo com mais uma daquelas derrotas intramuros que tanto nos custaram a engolir, frente à França na Liga das Nações (e bastava um empate) e frente à Sérvia no apuramento para este Mundial (e bastava igualmente um empate).
Desprezo
Confesso que não me estranha, pessoalmente, que as grandes seleções da Europa desprezem bastante esta prova que veio ocupar os lugares de calendário para internacionais amigáveis mas que tem visto os gigantes tombarem esfarelados como se tivessem pés de barro, exceção feita à última edição que teve quatro finalistas a França, a Espanha, a Inglaterra e a Bélgica, por esta ordem de classificação. A UEFA faz o que pode e o que não devia – na primeira edição, após se deparar com a descida da Alemanha para a II Divisão, tratou de alargar a I Divisão (de quatro grupos de três equipas passámos a quatro grupos de quatro equipas), ressuscitando assim os germânicos, algo que de pouco lhes valeu pois foram claramente deixados para trás por Hungria e Itália, embora atirando com os ingleses para a tal amaldiçoada divisão secundária pelo que ainda estamos para saber se não virá aí mais um obtuso e indecente alargamento. Talvez não, porque nestas coisas de UEFA, têm menos peso do que eles próprios julgam – os ingleses, claro! – mas logo se veria se tivesse sido o caso da França a descer no seu grupo, e foi por um triz que o não fez, somando apenas mais um ponto do que a Áustria.
As fraquíssimas exibições (e subsequentes resultados) de seleções como a França, a Alemanha ou a Inglaterra, dão que pensar sobre o futuro de uma prova que, em compensação é uma espécie de festa dos pobres. É verdade que em duas edições tivemos a França como vencedora de uma. Portugal (que faz parte do grupos dos pobres) foi o outro a levar o troféu para casa. Já como presentes em ambas as fases finais, houve Suíça, Holanda, Inglaterra, Itália, Espanha e Bélgica. Um fauna diversificada e que contou com as meias-finais mais fortes em 2021, em Itália. Já esta época, com Holanda e Croácia, e Hungria (ver-se-á durante a noite) e Portugal (esperemos pelo fnal de jogo de Braga), tudo parece voltar ao normal, sem grande respeito pelos monstros do futebol da Europa.
Dir-se-ia que jogar na expectativa pode ser uma vantagem para a seleção orientada por Fernando Santos, oferecendo, assim, a iniciativa ao adversário e tirar proveito dos espaços que obrigatoriamente se vão abrir na sua retaguarda e usá-los para dar liberdade criativa aos nossos jogadores mais dotados. Assim seria se não tivéssemos revelado tanta dificuldade em recuperar de entradas negativas em jogos verdadeiramente a doer como foram, por exemplo, os das fases a eliminar de 2018 e 2020, para Uruguai e Bélgica, sendo nós totalmente incapazes de ultrapassar os golos sofridos inicialmente frente a equipas da nossa igualha como também é, certamente, esta Espanha, a despeito da forte fase de renovação de que está a ser alvo.
Por outro lado, entrar a matar, também abriria as portas a um suicídio incompreensível para uma equipa que está a viver bem e feliz. Fernando Santos não é de riscos infundados. O mais natural é que Portugal tente ter a bola o mais tempo que der na sua posse, não esquecendo que, do outro lado, também está um conjunto que faz da posse a sua arma mais mortífera. E postas as coisas deste modo, temos tudo para assistir a uma grandessíssima estucha, como diria o Ega do divino Eça.
Há, na verdade, muitas semelhanças no estilo de Portugal e de Espanha e por aí se pode perceber a grande quantidade de empates que têm sucedido, o último exatamente no jogo da ida, em Sevilha, naquele estádio pavoroso que parece feito de restos de ferro velho e que se chama La Cartuja. Decidiu a Federação atribuir a Braga o prémio de receber o jogo decisivo deste grupo, abandonando as habituais opções de jogar nos estádios dos três grandes. É bem possível que o venha a sentir na carteira, mas desde que Portugal se apure para mais uma fase final, a coisa dá para os gastos. E far-se-á festa no Minho que também merece.