Iranianos, após mais de quatro décadas sob controlo de poderosos clérigos xiitas, mostram a sua raiva, galvanizados pela morte de Mahsa Amini, uma estudante de 22 anos, pela mão da infame polícia da moralidade. E os motins estão a alastrar.
É difícil saber exatamente o que se passa, com a internet estrangulada pelo regime, bloqueando o acesso a aplicações como o Whatsapp e o Instagram, deixando muitos iranianos na diáspora desesperados para saber dos seus familiares.
Mas lá vão gotejando vídeos aqui e ali, vindos de todas as províncias iranianas, sem exceção, não só do curdistão, de onde era originária Amini. As imagens mostram o impensável, protestos liderados por mulheres, aquelas que sentem mais o peso deste regime ultraconservador, muitas vezes atrevendo a defrontar-se com a polícia sem hijab, rodeadas por manifestantes homens. Parece que algo no sistema está a ceder.
O regime, como habitual, reagiu com brutalidade, havendo relatos do uso de fogo real. Os números oficiais registaram pelo menos 41 mortos, mas a expectativa é que a realidade seja muito mais trágica. Nos últimos protestos massivos no Irão, há três anos, devido ao aumento do preço dos combustíveis, estima-se que mais de 1500 manifestantes tenham sido abatidos pelas autoridades. E o regime desde então só se tornou mais agressivo, desde a chegada à presidência de Ebrahim Raisi, o antigo chefe do judiciário, considerado alinhado com a linha dura, sucedendo a Hassan Rouhani, que era visto como moderado.
O Governo de Rouhani ainda ia tentando avançar com algumas reformas, enfrentando constantes bloqueios do Líder Supremo, Ali Khamenei, junto com dos seus aliados da Guarda Revolucionária, uma milícia que funciona quase como um Estado paralelo. Contudo, isso mudou com Raisi, sob o comando do qual a polícia da moralidade se tornou ainda mais estrita e mais presente nas cidades do Irão, para desespero de muitas mulheres, que hoje saem à rua.
Por lei, todas as iranianas têm de usar roupas largas e cobrir o cabelo em público desde a puberdade, sendo tal obrigatório nas escolas a partir dos sete anos. A ideia seria cumprir os preceitos estabelecidos pela sharia, a lei islâmica, que exige que tanto as muçulmanas como os muçulmanos se vistam de forma modesta. Não surpreendentemente, a polícia da moralidade praticamente só tem como alvo as iranianas.
Estes agentes, supostamente, ao efetuar uma detenção, teriam como obrigação meramente aplicar uma multa ou levar a detida para a esquadra, onde esta teria aulas obrigatórias sobre os valores islâmicos. Frequentemente não é isso que acontece, sendo a polícia da moralidades conhecida por agredir impunemente suspeitas, recorrendo aos típicos bastões.
Como parece ter sido o caso de Amin, cujo corpo surgiu com marcas de espancamento após ser detida por usar incorretamente o hijab, tendo falecido a 16 de setembro, após ser hospitalizada em coma.
Mesmo sabendo dos riscos que isso acarretava, sempre houve iranianas que expressaram a sua revolta tentando contornar as regras. É frequente ver-se nas ruas de Teerão mulheres com roupas um pouco mais apertadas, ou a utilizar lenços mais coloridos, expondo o máximo de cabelo possível.
No entanto, o Governo de Raisi rapidamente deixou muito claro que não o iria tolerar. Ainda o mês passado Majid Emami, chefe da agência responsável pelo vestuário dos iranianos, ameaçava fechar as lojas e fábricas de têxteis que vendessem roupa com tecido de cores “barulhentas”, avançou a RFE/RL.
Isto quando no mês anterior já se notava descontentamento com a polícia moral. Houve ampla consternação nas redes sociais após se tornar viral o vídeo de uma mãe a implorar a agentes que não detivessem a sua filha, chorando e explicando que ela estava doente. Imagens mostram que o desespero da mãe chegou ao ponto de tentar bloquear com o seu corpo a carrinha da polícia onde ia a filha. O condutor começou lentamente a andar, atirando a mãe ao chão e seguindo caminho.
Não espanta que, para muitos iranianos, a morte de Amin tenha sido a gota de água. Os protestos ganharam uma escala tal que têm sido comparados com o Movimento Verde, em 2008, que contestava alegada fraude na eleição de Mahmoud Ahmadinejad, um dirigente de linha dura, que bateu o moderado Mir Hossein Mousavi.
De facto, há paralelos com a situação política atual. Com a diferença que Raisi nem enfrentou oposição digna de nota – se de facto o regime dos aiatolas permite que os iranianos vão às urnas, ao mesmo tempo são os clérigos que escolhem os candidatos, e desta vez eliminaram qualquer dirigente moderado com o mínimo de apoio popular.
Se o Movimento Verde era composto de faixas etárias e estratos sociais mais diversos, são jovens de classe média que compõem a espinha dorsal dos protestos pela morte de Amin. Os manifestantes “são sobretudo de uma geração mais nova que podem apenas ter ouvido falar do Movimento Verde. Eles seriam crianças ou adolescentes na altura”, notou o sociólogo Mohammadreza Jalaeipour, à conversa com a Foreign Policy. “Eles são destemidos, diretos e corajosos, mas também furiosos”.
De facto, é preciso coragem para enfrentar o regime iraniano, que já montou contraprotestos onde se exigia a execução dos manifestantes, acusando-os de serem agentes de Israel e dos Estados Unidos. Muitos desses jovens poderão em breve pagar caro por protestar, tendo as autoridades anunciado que já identificaram mais de 1200 “amotinados”, avançou a agência Tasnim, esta terça-feira.