Ainda eu era criança e já ouvia falar em Santa Bárbara, embora não soubesse quem era e desconhecesse a sua história.
Mais tarde, comecei a perceber que estava associada às trovoadas e que muita gente a ela recorria quando apareciam esses fenómenos meteorológicos. De facto, esta santa cristã do século III, venerada por católicos, ortodoxos e anglicanos, é a padroeira dos que lidam com o fogo, onde se incluem os bombeiros – e daí ser evocada particularmente em tempo de trovoada.
Contudo, quase ninguém se lembra dela a não ser naquelas alturas de instabilidade atmosférica, razão pela qual apareceu um ditado popular que toda a gente conhece e utiliza: «Só nos lembramos de Santa Bárbara quando ouvimos trovejar». Tem sido sempre assim. Quantas vezes isto não aconteceu connosco, sabe Deus em que condições?
Quando tudo corre bem e dentro dos parâmetros da normalidade, pensamos que esse estado de graça não acaba mais e por isso não é preciso fazer nada; basta ‘deixar andar’. O pior é quando aparece uma ‘trovoada na nossa vida’ e algum raio atinge o nosso equilíbrio e bem-estar. Aí tudo muda de um momento para o outro – e quase nunca estamos preparados nem dispomos de ‘para-raios suficientes’…
Há poucas semanas, uma idosa na casa dos noventa anos, residindo numa instituição, deixou de comer, apresentava discreta febrícula e os níveis de oxigénio começavam a baixar.
Conduzida a uma urgência hospitalar, regressou pouco tempo depois ao local de origem, ‘rotulada’ de infeção urinária. Como o estado geral era cada vez pior e a situação continuava por resolver, a filha, desesperada, procurou-me para saber a minha opinião. Então, como o serviço público não dava a resposta adequada, aconselhei-a a recorrer a um hospital particular e escrevi uma carta ao colega que iria receber a doente, explicando o que se passava.
Em minha opinião, era apenas necessário pôr um soro a correr, administrar um pouco de oxigénio e utilizar a chamada medicação de conforto, de que qualquer ser humano pode precisar no final da vida.
O colega hospitalar concordou com a minha proposta terapêutica, só que os custos do internamento, mesmo de curta duração, eram altíssimos e nem a doente nem a família tinham quaisquer possibilidades de os suportar. O que fazer, então? Se os hospitais públicos não recebem estes doentes e os privados são inacessíveis, quem dá resposta a estes casos? Soube mais tarde que a filha da doente, com a minha carta na mão, procurou ajuda noutro hospital público, onde outro colega, sensibilizado para o ‘melindre’ da situação, acabou por internar a senhora.
E agora sou eu que pergunto: onde estão os hospitais de retaguarda? Um ser humano no final da vida tem de estar sujeito às ‘esmolas’ dos profissionais de saúde? Quem não tiver dinheiro e for ‘rejeitado’ pelo Estado tem de ficar em casa, onde não tem condições para ser tratado com dignidade? Dizia-me a filha da doente: «Vou contar o que aconteceu a toda a gente para estarem preparados e não se lembrarem de Santa Bárbara só quando ouvirem trovejar».
É indispensável estarmos atentos a estes casos de doentes em final de vida. É urgente investir em cuidados continuados, estendendo esse investimento a todos os portugueses – e não só a alguns.
Para muita gente, falar em cuidados continuados ou paliativos pode ainda não dizer muito, mas quando um caso semelhante nos bate à porta tomamos consciência de que é preciso fazer alguma coisa. Infelizmente o país ainda não está preparado para responder a estes problemas – e daí ser fundamental pôr em marcha um plano que consiga ir ao encontro das necessidades básicas de um ser humano no final da vida.
Valha-nos Santa Bárbara! Há que recorrer a ela em tempo de acalmia, antes de aparecerem as trovoadas a assombrar-nos, sem sabermos como proceder.
A situação da saúde em Portugal é deveras preocupante e para muitos já se está a bater no fundo. O tema para o qual chamo hoje a atenção diz respeito a todos – e qualquer um de nós pode ser apanhado de surpresa. Ninguém queira ver-se em tais circunstâncias. Se um problema destes nos atinge, bem podemos chamar por Santa Bárbara…