Desde que há registo da existência do xadrez, a batota no jogo é um tema de discussão, e um grande chamariz para quem o pratica. O primeiro livro de xadrez moderno que chegou até nós, Repetição de Amores e Arte do Xadrez, de Luís Ramírez de Lucena, publicado em Salamanca em 1497, já contém conselhos para trapacear de alguma forma o jogo.
Nele, Lucena recomenda que o oponente se sente de frente para o sol, se estiver a jogar durante o dia, ou onde o tabuleiro esteja na sombra se o jogo decorre com luz artificial.
Até aos nossos dias, mais de 500 anos depois, a batota mantém-se, e tem-se aprimorado acompanhando os desenvolvimentos tecnológicos.
Recentemente, Magnus Carlsen, número um do ranking mundial de xadrez, abandonou repentinamente a Sinquefeld Cup de 2022, quando enfrentava Hans Niemann, xadrezista de 19 anos, 42.º no ranking mundial, que acabou eliminado nos ‘quartos’ da prova.
O mundo do xadrez encarou com estranheza a desistência de Carlsen e prontamente começaram a surgir rumores de batota. Entre eles, aliás, chegou a sugerir-se que Niemann teria usado um brinquedo sexual para receber informações sobre o jogo. Através de vibrações, num dispositivo inserido no seu ânus, Niemann estaria a receber indicações sobre o jogo contra Carlsen.
Teorias sem qualquer fundamento, e que muitos acusaram de não ser mais do que brincadeiras, mas que inundaram a internet com possibilidades e levaram o próprio norte-americano a sugerir que jogaria nu para provar que não recorre a essas ferramentas para fazer batota.
“Não me interessa, porque eu sei que estou limpo. Querem que eu jogue numa caixa fechada sem transmissão eletrónica, não me interessa. Estou aqui para ganhar e esse é o meu objetivo, independentemente do resto”, disse o americano, citado pela BBC.
A polémica explodiu na internet, e o próprio Elon Musk, fundador e homem forte da Tesla, se envolveu, publicando um tweet onde se podia ler uma citação de Arthur Schopenhauer, com um toque ‘diferente’: “O talento atinge um alvo que mais ninguém consegue atingir. O génio atinge um alvo que mais ninguém consegue ver (porque está no teu rabo)”.
Finalmente, e depois de semanas de especulação, Carlsen emitiu um comunicado sobre o assunto. “Acredito que a batota no xadrez é algo importante e uma ameaça existencial ao jogo. Creio também que os organizadores e todos aqueles que se preocupam com a ‘santidade’ do jogo que amamos deveriam considerar seriamente o aumento das medidas de segurança e dos métodos de deteção de batota no tabuleiro”, disse o norueguês, fazendo fortes acusações: “Creio que Niemann tem feito mais batota – e mais recentemente – do que admitiu publicamente”.
Isto porque o norte-americano admitiu entretanto ter, em duas ocasiões no passado, recorrido a programas de computador durante jogos online, mas nunca em partidas presenciais.
“A progressão dele no tabuleiro tem sido fora do comum. Ao longo do nosso jogo na Sinquefeld Cup, tive a impressão de que ele não estava tenso ou mesmo completamente concentrado”, acusou Carlsen.
O mundo do xadrez não brinca em serviço no que toca à batota, e os principais atores deste universo estão agora ansioso sobre o que acontecerá neste caso entre Niemann e Carlsen, que, para todos os efeitos, ainda não apresentou provas contundentes para fundamentar a sua acusação.
Recorde-se, a título de exemplo da ‘dureza’ dos órgãos que tutelam a competição internacional, o caso de Borislav Ivanov, que, em 2013, foi acusado de fazer batota, utilizando um dispositivo escondido nos seus sapatos. A recusa de tirar os sapatos a pedido de um árbitro foi interpretada como uma admissão de culpa. Resultado? Ivanov tornou-se um pária no mundo do xadrez profissional e foi despojado do seu título.
História de batotas O xadrez não é, de todo, um mundo isento de acusações e rocambolescas histórias de batota. Fale-se, por exemplo, do confronto entre Anatoly Karpov e Viktor Korchnoy, que decidiria o título mundial do ano 1978. Sobre o tabuleiro jogava-se muito mais do que um simples jogo. Jogava-se o orgulho de dois blocos políticos e culturais que há décadas se enfrentavam na denominada Guerra Fria. De um lado, o dissidente soviético Korchnoy e, do outro, Karpov, a estrela que contava com o alto patrocínio das patentes soviéticas, para mostrar ao mundo a sua garra.
O encontro foi de alta tensão. Nenhum dos xadrezistas se cumprimentou, e de pronto começaram as acusações.
Korchnoy acusou Karpov de olhar para ele fixamente para enervá-lo. Ele respondeu usando óculos escuros espelhados que refletiam os holofotes da sala. Mais, o dissidente soviético acusou o seu rival de usar parapsicólogos e hipnotizadores da KGB para exercer controlo mental sobre ele e reagiu com seus próprios ‘especialistas’, que por sua vez foram impedidos pelos soviéticos.
Até dos iogurtes que Karpov ia recebendo durante os jogos Korchnoy suspeitou, denunciando um sistema codificado de mensagens ocultas relacionadas com o sabor e a posição da colher. No fim, Karpov venceu 6-5, ao fim de 32 jogos. Nem o árbitro Lothar Schmid nem a Federação Internacional de Xadrez reconheceram ter havido qualquer batota, mas a realidade é que, depois da polémica dos iogurtes, decidiu-se que Karpov só poderia receber um iogurte por jogo, sempre do mesmo sabor.