Brasil. Conquistas e curiosidades. O primeiro turno à lupa

As eleições gerais não definem apenas o próximo Presidente do país. Os brasileiros foram às urnas no domingo (alguns até de lancha) para eleger governadores e centenas de parlamentares. Entre eles há mulheres trans, jovens antifeministas e uma indígena.

A diversidade também é eleita

Não foi uma, foram duas: o Brasil pela primeira vez na sua história elegeu mulheres transsexuais para o Congresso nacional. Erika Hilton (PSOL-São Paulo), com 256 mil votos, e Duda Salabert (PDT-Minas Gerais), com 208 mil votos, foram eleitas para representar os seus estados em Brasília como deputadas federais em 2023. Ambas foram alvo de inúmeras ameaças de morte durante os seus primeiros cargos públicos como vereadoras em São Paulo e Belo Horizonte (Minas Gerais), respetivamente. O histórico de discriminação obrigou mesmo Duda Salabert a ir votar no domingo com um colete à prova de balas. Também as assembleias legislativas brasileiras vão passar a contar com a presença de pessoas trans. Linda Brasil (PSOL) tornou-se a primeira deputada estadual transsexual eleita em Sergipe, o estado mais pequeno do Brasil, assim como Dani Balbi (PCdoB), eleita pelo Rio de Janeiro. Para a assembleia legislativa de São Paulo foi ainda eleita Carolina Iara, da Bancada Feminista do PSOL, que reúne lideranças do movimento negro e feminista.

Viajar de lancha para votar

A bordo de uma voadeira – é assim que chamam às lanchas – nas águas do rio Negro, um afluente do Amazonas, indígenas brasileiros faziam o “L” de Lula com os dedos, a caminho da sessão eleitoral. Como muitos brasileiros, os indígenas da etnia Kambeba tiveram de votar numa escola. Mas para lá chegar precisaram  de atravessar até São Sebastião, cidade situada nos arredores de uma reserva a cerca de 60 quilómetros de Manaus, onde vivem cerca de 115 indígenas. Vestidos a rigor com estampas tribais, não escondem que vão votar em Lula da Silva para Presidente. O legado ambiental do candidato do PT está longe de ser irrepreensível, mas o ex-Presidente prometeu, durante a campanha, criar um ministério dos Povos Originários, chefiado por uma personalidade indígena. Já Jair Bolsonaro (PL) prometeu que não cederia “um centímetro a mais” de terras aos povos indígenas. E durante o seu mandato também se mostrou sempre favorável à exploração mineira e agrícola nestes territórios, supostamente reservados às atividades tradicionais dos indígenas.

De ‘cancelado’ a mais votado

É um fenómeno das redes, dá palestras sobre religião e política e diz que foi “cancelado” várias vezes na faculdade pelos posicionamentos contra a esquerda, o feminismo, a ideologia de género e o aborto. Aos 26 anos, Nikolas Ferreira foi o deputado mais votado do país e da história de Minas Gerais, com 1,5 milhões de votos, perto do recorde nacional de Eduardo Bolsonaro, que teve 1,8 milhões de votos nas eleições de 2018. Natural de Belo Horizonte, onde é atualmente vereador, desde que foi eleito, pelo PL de Jair Bolsonaro, em 2020, é licenciado em Direito e rejeita abertamente tudo o que é considerado progressista. No Instagram e no Twitter, onde acumula um milhão de seguidores em cada plataforma, chama à atenção pelas suas referências à religião, ao porte de armas e ao liberalismo económico. A sua popularidade cresceu durante a pandemia, quando se manifestou contra a vacina, o uso de máscaras, o isolamento social e os lockdowns. Em 2021, foi até barrado de subir ao Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, por não apresentar o certificado de vacinação.

Da Lava Jato para o Senado

Sergio Moro foi eleito senador no domingo com 1,95 milhão de votos. Mais conhecido por atuar como juiz de primeira instância na operação Lava Jato e condenar dezenas de políticos, entre eles o candidato e ex-Presidente Lula da Silva, Moro estava atrás do candidato Álvaro Dias nas sondagens, mas conseguiu conquistar a maioria dos eleitores no estado do Paraná, onde se candidatou. Após a confirmação do seu desempenho nas urnas, o ex-ministro de Jair Bolsonaro afirmou que, com a vitória, “a Lava-Jato vive e vai chacoalhar Brasília novamente”. Segundo a imprensa brasileira, a intenção de Sergio Moro é utilizar o protagonismo que agora alcançou nas urnas para tentar retomar o seu projeto político de se lançar à Presidência da República brasileira. Com quatro anos de mandato como senador, o antigo juiz auxiliar no Supremo Tribunal Federal (STF) pretende integrar uma comissão relevante, como a da Constituição e Justiça, e posicionar-se como um opositor do futuro Presidente da República – seja ele Lula ou Jair Bolsonaro.

A primeira deputada indígena

Sónia Guajajara tornou-se este domingo a primeira mulher indígena eleita como deputada federal pelo estado de São Paulo, no Brasil. A ativista que ainda na semana passada foi nomeada finalista do Prémio Sakharov, ao lado do Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, tem-se distinguido pelo trabalho que tem feito na proteção dos direitos das comunidades indígenas e do meio ambiente, sendo alvo constante de perseguições por parte de agentes do Estado brasileiro. Em 2021, encabeçou uma iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil que acusou o Governo de Jair Bolsonaro de genocídio da população nativa no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, nos Países Baixos. No Twitter, este domingo, a parlamentar eleita  com mais de 150 mil votos para representar o estado paulista na Câmara dos Deputados comemorou assim a conquista: “São Paulo, nós conseguimos! A primeira mulher indígena eleita como deputada federal. Muito, muito obrigada pela confiança! Vamos aldear mentes e corações, e construir um novo Brasil”.

Mais de 32 milhões não votaram

As multas irrisórias, cujos valores variam entre 1,05 e 3,51 reais (menos de um euro), não impediram que mais de 32 milhões de brasileiros, o equivalente a 20,9% do eleitorado, não fossem votar. Este foi o nível de abstenção mais elevado numas eleições brasileiras desde 1998, quando 21,5% dos eleitores não compareceram às urnas. Em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, a taxa de abstenção foi de 21,6%, já em Minas Gerais, o segundo estado com maior número de eleitores, foi de 22,2%. No Brasil, o voto é obrigatório para adultos entre os 18 e os 59 anos, assim, quem não comparecer às urnas e não tiver apresentado uma justificação válida fica impedido de obter passaporte, participar em concursos para a função pública e está sujeito a uma multa. A abstenção no Brasil tem crescido desde 2006, quando 16,8% dos eleitores não votaram. Em 2010, a taxa subiu para 18,1%. Quatro anos depois, fixou-se nos 19,4%. E nas eleições presidenciais anteriores, em 2018, alcançou os 20,3%. A maior taxa de abstenção foi registada em 1994, quando 29,3% dos eleitores não compareceram.