Energia. França quer bloquear gasoduto nos Pirenéus

Macron não quer apostar no gás natural, prefere o hidrogénio que sonha vender. Nesta disputa entre “Portugal, Espanha e França, todos querem ter importância na segurança energética da Europa”, salienta Carla Fernandes.

Por mais que Portugal, Espanha e Alemanha queiram construir um gasoduto através dos Pirinéus, o chamado MidCat, França não se mostra inclinada a tal. A Península Ibérica tem grande capacidade de regaseificação – ou seja, receber gás natural liquefeito (LNG) transportado por via marítima e depois transformá-lo em gás, pronto a usar – e poderia servir de alternativa ao Governo alemão, que nunca investiu nestes terminais, aproveitando os preços baixos do gás natural russo até ser surpreendido pela invasão da Ucrânia. Mas o sonho português e espanhol de revender gás natural aos alemães esbarrou em Emmanuel Macron. Por mais que o Governo de António Costa afirmasse que talvez ainda o convencessem.

“São três países com objetivos semelhantes. Portugal, Espanha e França, todos eles querem ter importância para a segurança energética da Europa”, realça Carla Fernandes, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), especializada em energia.

“França já recebe gás natural liquefeito e também quer reexportá-lo para a Alemanha. Isso vai contra os objetivos de Portugal e Espanha”, explica. Além de que Berlim depender mais energeticamente de Paris daria mais peso aos franceses dentro do eixo franco-alemão. E estes ainda querem, “quem sabe, futuramente exportar hidrogénio produzido com energia nuclear”. 

Foi exatamente isso que disse Macron, quando falou à imprensa durante uma cimeira informal de líderes da União Europeia, em Praga, esta quinta-feira. “A questão que nos devemos colocar é se vamos fazer circular o hidrogénio por toda a Europa. Ou, melhor, a eletricidade para fazer eletrólise”, declarou o Presidente francês, referindo-se ao processo de criar hidrogénio (H2) a partir de água (H2O).

“Temos vontade de sermos duravelmente grandes importadores de gás?”, questionou Macron. “Não”, respondeu, estimando que um projeto como o MidCat demoraria entre cinco a oito anos a estar pronto. “Creio que a nossa prioridade é antes uma interconexão elétrica na Europa. E por isso sou mais favorável a esse projeto”.

Trata-se de um argumento bastante razoável, avalia Clemente Pedro Nunes, professor catedrático no Instituto Superior Técnico (IST). “Não dou grande ênfase a essa proposta de gasoduto. Porque a Alemanha pode ser abastecida diretamente através de navios com LNG”, considera o professor, que integra o observatório de energia e indústria da associação SEDES. “Não vejo grande vantagem em o gás ser descarregado em Sines e andar a passear pela Europa”.

De facto, o objetivo do MidCat seria aproveitar os terminais de LNG já construídos para receber gás natural – vindo de países como os EUA, Argélia, Qatar, Nigéria ou, um dia, quem sabe, de Moçambique – em vez da Berlim ter de investir em terminais novos. Mas Nunes tem dúvidas quanto à viabilidade económica do projeto. 

A distância daqui até à Alemanha de facto é muito grande”, recorda o professor. “À partida não vejo grande vantagem. Até porque o nosso terminal de gás natural já está relativamente saturado. Os espanhóis estão mais folgados, nomeadamente na Catalunha e no País Basco, aí pode ganhar-se alguma coisa. Mas não dá para justificar grande investimento”.

Mesmo a grande capacidade natural de Portugal para armazenar gás no subsolo, como já faz em cavernas salinas de Carriço, em Pombal, não justificaria tal investimento, aponta o professor do IST. “Mais importante para Portugal e para a Europa são as interligações elétricas. Porque a eletricidade não se armazena diretamente. E indiretamente é um filme”. Aí, é preciso apostar em estratagemas ineficientes, como bombear água encher reservatórios, que depois são usados para produzir energia hidroelétrica. Ou para a produção de hidrogénio verde, que, mesmo sendo apontado como a energia limpa do futuro, ainda está a descolar.

“Se tivermos excedente de eletricidade quando há muito vento, a única maneira de aproveitar é vender para França, senão perde-se”, exemplifica Nunes. É uma algo que ocorre recorrentemente em Portugal, que nos últimos anos se afirmou um peso pesado a nível de energias renováveis, até por possuir condições ideais para tal. “Por outro lado, temos risco de falta de eletricidade nas horas de ponta, que é o problema das intermitências. Mas com interligações reforça-se a estabilidade”.

Além de o MidCat, de certa forma, chocar com as preocupações com as alterações climáticas. “Estamos numa crise energética, tudo bem, mas o objetivo da Europa é caminhar rumo uma transição energética”, salienta Carla Fernandes.

“O projeto espanhol é de energias fósseis, portanto vai contra o plano de transição energética. Essa é a visão dada por França em relação aos projetos”, explica a investigadora do IPRI-NOVA. “Por outro lado, seria importante porque há falta de alternativas de abastecimento para a Europa. E aí está tudo dito”. 

Já Nunes acrescenta que, apesar da guerra da Ucrânia ter acelerado os apelos para a Europa diminuir a dependência energética da Rússia, ninguém está com grande pressa em fazer investimentos de longo prazo, viáveis economicamente apenas assumindo que não se voltará poder comprar gás natural russo. No que toca à Alemanha, “a médio prazo, a Rússia está ali ao lado. E não vai deixar de estar, se é que me entende”, explica o professor do IST. E “o custo do gás natural russo é quase um terço do americano”, salienta.

“O resto é geopolítica”, continua Nunes. Recordando uma célebre frase do antigo primeiro-ministro britânico William Gladstone. Que dizia que “o Reino Unido tem interesses permanentes, não tem amigos permanentes”.