Foi oficialmente implementado, há 30 anos, pela Federação Mundial da Saúde Mental, mas só tem vindo a ganhar mais importância nos últimos anos. Atribuir a devida relevância às doenças do foro psicológico e lutar para que ideias associadas às mesmas sejam desmistificadas são os dois objetivos principais desta efeméride. No entanto, tanto as crianças como os jovens, adultos e idosos não estão a obter o acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico necessário. Muito menos em Portugal.
“Este dia, sendo o Dia Mundial da Saúde Mental, devia estar centrado na dimensão da saúde e não da doença. Nessa perspetiva, penso que ainda temos um caminho muito longo para percorrer do ponto de vista daquilo que deve ser a intervenção psicológica e da forma como a queremos encarar. Não deve servir apenas para tratar problemas psicológicos já instalados, mas sim para atuar na componente do desenvolvimento que assume uma importância ainda maior nas crianças e nos jovens”, começa por explicar, em declarações ao i, Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP).
“Se trabalharmos com eles, promovendo competências sociais e pessoais, nomeadamente para que possam colocar-se mais facilmente no lugar dos outros, gerirem melhor diferenças de opinião e alternativas para que se diminuam as situações de discriminação, mais empatia, mais compaixão pelo sofrimento do outro, para que adotem comportamentos de aproximação e ajuda perante o outro… Tudo permitirá que possam ficar mais resistentes e resilientes, que é o termo mais correto, para lidar melhor com situações constrangedoras – que são muitas – ao longo da sua vida”, frisa, constatando que estas adversidades podem surgir tanto no relacionamento com os pais, amigos, namorados, professores como na aprendizagem, na atenção, na violência que resulta de uma má gestão das relações, entre outros.
“Todas são dificuldades com que lidam diariamente e, para lidar com as mesmas, têm de estar mais fortalecidos. Em primeiro lugar é muito importante que nos foquemos quando ainda não há um sofrimento psicológico muito significativo”, diz, sendo que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) aproximadamente mil milhões de pessoas no mundo têm distúrbios psicológicos e, destes, a depressão e a ansiedade aumentaram 25% em 2020.
“Também devem ter competências para florescerem e ir mais além para elevarem ao máximo as suas capacidades: não é um discurso meramente emocional porque, na prática, tem efeitos. Se as crianças e os jovens conseguirem obter melhores resultados académicos, se puderem intervir socialmente, se interferirem em situações de injustiça, etc. teremos pessoas muito mais saudáveis psicologicamente no futuro”, esclarece, estabelecendo um paralelismo entre este panorama ideal e o facto de, no primeiro semestre do ano corrente, terem sido receitadas 10,9 milhões de embalagens de antidepressivos, ansiolíticos, sedativos e hipnóticos.
Portanto, quase 60 mil embalagens por dia e este número corresponde a um aumento de 4,1% face ao mesmo período de 2021 (10 439 500), como o Infarmed avançou à agência Lusa.
Relativamente aos medicamentos prescritos e comparticipados, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde adiantou que foram vendidas neste período 5 338 574 embalagens de ansiolíticos, sedativos, hipnóticos, representando um encargo para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de 10 300 100 euros. Os antidepressivos representaram um valor ainda mais elevado, na medida em que a despesa já totalizou 22 244 076 euros, isto é, 5 532 708 caixas vendidas.
Número de psicólogos insuficiente no SNS “Os mais jovens são muito mais abertos às necessidades de apoio psicológico, àquilo que pode ser a ação de um psicólogo, há muito menos tabu do que anteriormente e, para as mais diversas situações, sejam pessoais, académicas e/ou profissionais, já procuram de forma muito espontânea a intervenção psicológica para melhorarem. Aquilo que se pode dizer é que, antes da pandemia, já apresentavam vulnerabilidades prévias: dificuldades na autorregulação emocional, na expressão emocional, a agressividade que se virava contra os mesmos…”, reflete Sofia Ramalho, sublinhando que “é natural que o isolamento tenha aumentado as situações de ansiedade e depressão assim como sintomatologia como a automutilação e as perturbações do comportamento alimentar”.
“E por estarem ainda mais envolvidos com a dimensão do online, tendo acesso a mais informações, grupos, comportamentos virtuais negativos, se não forem tão acompanhados acabam por estar cada vez mais isolados e esses comportamentos, mimados e potenciados pelas situações virtuais, podem agravar-se. Mas as crianças e os jovens podem, recorrendo a acompanhamento psicológico e psiquiátrico, tornarem-se em adultos saudáveis em termos psicológicos”, garante, asseverando que “todos temos capacidade de superação e ela é tanto maior na medida em que se for necessária a intervenção, ela esteja disponível”.
Contudo, trilhar este caminho é tudo menos fácil porque “nos cuidados de saúde primários, temos muitas necessidades e, de forma nenhuma, os psicólogos para suprirem essas necessidades”, sendo que “estamos a falar de 900 a 1000 psicólogos para todo o SNS e a maioria das pessoas não tem capacidade para ir ao privado”.
“O acompanhamento psicológico é acessível a uma parte reduzida da população portuguesa. E quando existe esse acesso, no SNS, há períodos de espera de seis a oito meses. Tudo se agrava e, depois da primeira consulta, a segunda demora muito para acontecer e isto não pode acontecer desta forma”, afirma, lembrando que, naquilo que diz respeito aos utentes que já têm doenças psicológicas em desenvolvimento e necessitam de medicação, temos de pensar nos medicamentos para além dos antidepressivos.
Em relação ao consumo de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos houve uma diminuição entre 2019 (10 329 106 embalagens) e 2020 (10 233 236), porém a tendência alterou-se, no ano passado, quando foi verificado um aumento através da venda de 10 742 611 caixas, isto é, uma despesa de 20,5 milhões de euros para o SNS. Estes números tornam-se ainda mais preocupantes se pensarmos no futuro: um novo estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra concluiu que a depressão aumentou nos adolescentes e afeta 42% dos jovens.
Por outro lado, 28,5% dos mais de cinco mil jovens inquiridos expressaram sintomas de depressão moderada ou grave e as raparigas apresentam piores indicadores de saúde mental. Este estudo foi levado a cabo no ano letivo 2021/22 e baseou-se numa amostra de 5 440 jovens, com uma média etária de cerca de 14 anos, e que frequentam mais de 150 escolas de norte a sul do país, estando incluída a Região Autónoma da Madeira.
“O subinvestimento na Saúde Mental é crónico no nosso país e havia um estigma associado a este tema. Por outro lado, esse estigma tem vindo a reduzir-se, está a haver uma mudança e ela não aconteceu apenas devido à pandemia”, observa Sofia Ramalho, lembrando, todavia, que “há um entrave no ponto de vista dos investimentos financeiros: a saúde psicológica, a prevenção e a promoção da mesma como uma prioridade”, mas “apesar disso, o Governo reconhece a sua importância”.