por João Cerqueira
Escritor
O Barbeiro Espiritual abrira o seu salão há um ano e o sucesso fora imediato. De Segunda a Sábado atendia uma clientela crescente que não se importava de esperar algumas horas para receber os seus serviços. Homens de diversas idades e estratos sociais pagavam mais de cinquenta euros para que ele os ajudasse a resolver os seus problemas, enquanto lhes cortava o cabelo e fazia a barba. Cada sessão demorava o tempo necessário para que o cliente saísse de lá em paz consigo próprio e agradado da sua nova aparência. No final, aqueles olhavam-se ao espelho e a imagem que viam era a de outro homem. Espalhados pelo chão, ficavam os cabelos e os problemas; dentro do copo onde limpava a navalha, misturadas com o creme de barbear, jaziam as angústias. E apenas um ou outro raro cliente se ia embora com a sensação de o seu tormento não ter sido bem escanhoado.
No entanto, ninguém sabia ao certo de onde viera o Barbeiro Espiritual. Uns diziam que era licenciado em psicologia, outros que tinha um mestrado em filosofia e outros ainda afirmavam quem em tempos fora padre, expulso devido às suas ideias heréticas. Detratores afirmavam que ele apenas repetia as receitas dos manuais de autoajuda e as mensagens dos livros de Paulo Coelho. E correu ainda um rumor de que ele era louco e já havia degolado um homem.
Na parede havia um único diploma: o curso de Coiffeur et Barbier de Paris.
Alguns amadores tentaram imitá-lo, mas depressa ser viram forçados a fechar as portas. Outros barbeiros não conseguiram animar clientes deprimidos, psicólogos atrapalharam-se com as tesouras.
O Barbeiro Espiritual não tinha concorrência.
Um inspetor das atividades económicas veio investigar o seu salão mas, após uma vistoria minuciosa ao espaço e algumas perguntas sobre o seu método de trabalho, acabou a aceitar o convite para lhe ser cortado o cabelo. E não tardou também ele a desabafar os seus infortúnios pessoais, tornando-se um cliente regular.
O salão estava decorado com quadros de pintores contemporâneos, havia uma biblioteca que continha obras da literatura universal, um aquário com peixes tropicais, vasos com flores, e ouvia-se música clássica. A única cadeira existente era revestida a pele natural, as tesouras eram de prata e as navalhas de aço inox importadas do Japão.
Entra então um homem de meia-idade no salão que pede para lhe ser feita a barba. O Barbeiro Espiritual convida-o a sentar-se na cadeira, coloca-lhe um pano em volta do pescoço, e começa a ensaboar-lhe a face com um creme de aloé.
– Então caro senhor, o que traz cá?
O homem revolve-se na cadeira e pigarreia, sem todavia responder. Habituado a casos difíceis, o Barbeiro Espiritual prossegue o seu trabalho esperando que o cliente se descontraia. A navalha japonesa começa a deslizar lentamente da orelha para o queixo, a lâmina perdendo o brilho à medida que o creme a submerge. E o primeiro corte dos pelos grisalhos traz alguma confiança ao homem.
– Tenho sessenta anos. Sinto-me velho e fraco. Não falo com ninguém e nada me dá prazer. A minha vida não faz qualquer sentido.
Ante o principal lamento dos seus clientes, o Barbeiro Espiritual começa a tentar desbastar-lhe a perturbação manejando com perícia a navalha.
– Todos os seres humanos que não morrerem cedo vão ficar velhos e fracos. E no entanto os jovens nem sempre são as pessoas mais felizes. Há homens com noventa anos que desejam intensamente viver e há rapazes com dezoito deprimidos. A idade não determina a felicidade de cada um…
O cliente interrompe-o.
– Ainda que o que disse seja verdade, como posso aceitar viver neste mundo absurdo? Estamos no século vinte e um, fomos à lua, mandamos robots para Marte, clonamos seres vivos, mas os seres humanos continuam a matar-se, a deixar morrer o seu semelhante à fome e a escravizá-lo…
– O senhor e eu não somos responsáveis por isso.
– Somos cúmplices. Assistimos à desgraça do mundo e nada fazemos.
– E o que acha que deveríamos fazer?
– Não sei, qualquer coisa …
– Pode fazer protestos, participar em manifestações, escrever cartas aos responsáveis.
– E acha que isso adianta alguma coisa? Acha que isso vai mudar o mundo?
– Algumas conquistas da humanidade começaram assim. O protesto e a resistência pacífica têm imenso poder.
– Acha que a fome em África, o terrorismo ou a guerra entre Israel e a Palestina vão acabar se eu for para a rua gritar ou enviar um email para algum governante? Supõe que os senhores da guerra ou os traficantes de droga se vão comover com os meus pedidos? O Papa, o Dalai Lama e a ONU passam o tempo todo a apelar à paz e ao respeito pelos direitos humanos e ninguém lhes dá ouvidos.
– Pelo menos cumpriu a sua obrigação como cidadão.
– E depois posso dormir descansado enquanto a matança continua, não é?
– E por que motivo há de carregar nas suas costas os problemas da humanidade?
– Já lhe disse que somos todos moralmente responsáveis, você também. Aliás, diga-me qual foi até agora o seu contributo para ajudar os desgraçados deste mundo.
O Barbeiro Espiritual interrompe por instantes o corte da barba, levanta a lâmina e olha para a carótida do cliente.
– Converso com as pessoas que necessitam de ajuda.
– E ganha dinheiro com isso.
– É a minha profissão.
– Uma profissão que existe à custa do sofrimento alheio.
O Barbeiro Espiritual coloca mais creme de aloé no rosto do cliente. Nas colunas ouve-se Maria Callas a interpretar Ave Maria de Schubert. Um dos peixes tropicais solta bolhas de ar pela boca.
– Suponho que ninguém é obrigado a vir ter comigo, pois não?
– E onde queria que eu fosse? Acha que ia permitir que um psiquiatra me fizesse a barba?
– Provavelmente não ficaria satisfeito com o resultado.
– Claro, já viu o aspeto desleixado daqueles tipos?
– Na verdade, alguns são meus clientes.
– Não me admiro.
– Bom, voltemos aos problemas que o atormentam…
– Já lhos contei. E parece-me que afinal o senhor não tem nenhuma solução especial, pois não?
– Toma-me por Deus?
– Deixe-se de ironias e assuma que não me pode ajudar.
– Permita-me então fazer-lhe uma pergunta.
– Está bem, mas não se distraia quando estiver a acertar as patilhas.
– Se o senhor fosse Deus, o que faria para melhorar o mundo?
– Essa pergunta é absurda e confirma a sua incapacidade para me ajudar.
– Tem receio de responder?
– O que pretende com isto? Está a tentar baralhar-me?
– Responda primeiro, se faz favor.
– Sabe muito bem que os crentes justificam o mal devido ao mau uso do livre arbítrio concedido por Deus, logo desresponsabilizam-no. E quanto aos ateus, nem sequer perdem tempo com esses devaneios.
– Mas o senhor é capaz de ir mais longe do que os crentes e refletir sem os preconceitos dos ateus, não é verdade?
O homem queda-se de novo em silêncio, uma gota de suor escorre-lhe pela testa.
O Barbeiro Espiritual limpa a lâmina num copo com água deixando-a de novo a brilhar.
– Talvez agora se dê conta que quiçá nem mesmo Deus, seja lá qual for a ideia que dele fizer, poderia mudar a natureza humana. Já tentou renová-la com o dilúvio e com chuvas de fogo, mas passado algum tempo ficou tudo na mesma.
– Está a tentar divertir-se à minha custa? O sofrimento é para si uma comédia?
– Estou apenas a mostrar-lhe que há certas coisas que ninguém pode mudar e que apenas nos resta aceitar o mundo tal como ele é. Uma comédia e uma tragédia.
– Aceitar o mundo como ele é, longe da violência e da miséria …
– Sim, porque vivemos no melhor mundo possível.
– O melhor mundo possível? Então imagine que alguém lhe punha uma bomba no salão? Aceitaria tranquilamente o sucedido, caso sobrevivesse, conformando-se com a natureza humana?
– Acionava o seguro contra todos os riscos.
– Guarde o sarcasmo para outro cliente. Mas no entanto acaba de me dar razão. Até os privilegiados sentem que a vida é uma permanente ameaça. E o que fazem os que não têm seguro contra qualquer risco? Quem os protege?
– Pretende então entrar no inferno para ver se lhe apaga o fogo? O mais certo é ficar também queimado.
– Há quem faça trabalho voluntário em zonas de guerra, quem socorra feridos de catástrofes naturais, quem enfrente o vírus do Ébola…
– E porque é que o senhor não vai também ajudar os desvalidos? Talvez finalmente encontre a redenção para o que o diz ser uma responsabilidade moral.
– Não seja cínico. Sabe muito bem que a minha idade não me permite grandes esforços.
– Não se sinta culpado. Ajudar desconhecidos é algo admirável, mas muito poucas pessoas são capazes de tal.
O homem começa a falar mais alto.
– E no fundo é isso que lhe convém. Que ninguém faça nada pelos outros para haver sempre infelizes que venham ao seu salão ser enganados.
O Barbeiro Espiritual compreende por fim que o cliente trouxera a sua própria navalha, bem afiada. Talvez estivesse diante de um colega frustrado.
– Afinal, procura algo mais do que uma redenção …
O homem dá um murro no braço da cadeira.
– Sente-se desmascarado, não é?
O Barbeiro Espiritual interrompe de novo o corte e respira fundo. Os peixes agitam-se no aquário. Sem que o cliente veja, engole um comprimido.
– Quer pegar no pincel e na navalha e fazer-me a barba?
– Já lhe estou a tosquiar a soberba.
O homem solta uma gargalhada, continuando a falar entusiasmado.
– Não estava à espera que lhe dissessem que é uma fraude e que não consegue ajudar ninguém, pois não? Não pensava que um dia iria entrar alguém como eu no seu salão e pô-lo no lugar? Pois esse dia chegou. E até lhe digo mais: é capaz de ter mesmo razão. O mundo não pode ser mudado. A natureza humana não tem emenda. Nem mesmo Deus pode fazer alguma coisa por nós. Não há redenção possível. Para quê nos ralarmos, afinal? E é por isso mesmo que o seu salão não serve para nada. Feche-o. Feche esta espelunca!
O homem olha triunfante para o Barbeiro Espiritual, como se lhe tivesse arrancado o escalpe.
Este pousa a navalha e coloca um espelho do lado esquerdo e do lado direito do cliente para que este avalie a simetria das patilhas.
O homem parece satisfeito com o trabalho. Sorri.
Por agora, a desgraça do mundo boiava no copo onde fora limpa a navalha.
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