Por António Bagão Félix, economista
O OE 2023 é fundamentalmente um Orçamento reactivo e de conjuntura. Sendo o primeiro verdadeiro exercício orçamental completo do Governo com maioria absoluta, seria de esperar que estivesse além da conjuntura e englobasse um caminho assumidamente reformista.
Quanto ao quadro macroeconómico, reconhece-se a dificuldade em fixar previsões num tempo de grande volatilidade dos principais indicadores e num período de enorme imprevisibilidade face à guerra e à crise energética. Mesmo assim, estimo que a taxa de inflação vá superar a média anual de 4% e sou algo céptico quanto à concretização da componente de Investimento, em regra orçamentalmente sobrestimada.
Em termos globais, aplaudo o objectivo de um superavit primário de 1,6% do PIB, que compara com a estimativa de 0,3% este ano (ainda que este valor me pareça ‘tacticamente’ subestimado). Quanto à redução da percentagem da dívida pública face ao PIB, penso que é um bom indicador, embora impulsionado pelo crescimento da riqueza nominal e do deflator do Produto. De qualquer modo, é uma meta exigente, designadamente para suster a pressão dos mercados em termos de subida de taxas de juro, até porque, em 2023, estão previstas emissões brutas de 59 mil milhões de dívida.
Em geral, as medidas orçamentais do lado tributário, são relativamente modestas. Por um lado, porque este é um domínio onde não se visualiza um firme propósito de iniciar um caminho de uma verdadeira reforma fiscal. Por outro lado, porque temos medidas avulsas que vêm adensar o labirinto e a opacidade fiscais. O Governo, numa lógica predominantemente socialista, prefere a subsidiação em vez de uma coerente e ousada reforma de alguns impostos, assim mantendo a senda da ‘tributação por inércia’ nos impostos, contribuições e taxas. É o caso do IVA, que, contrariamente ao que se passa em outros países europeus, não é objecto de reduções em bens essenciais. Já quanto ao IRS, saúda-se a diminuição em 2 pp no 2º escalão de rendimento colectável, bem como a (apenas parcial) actualização dos escalões, embora não aconteça o mesmo com as deduções à colecta. Quanto ao IRC, as medidas previstas são teoricamente interessantes, mas de execução complexa e eficácia reduzida, excepto na possibilidade de reporte de prejuízos fiscais sem limite de anos.
Diz o Relatório do OE 23 que «se reforçam os rendimentos e se assegura a actualização das pensões». Eis um exemplo de ‘meias-verdades’. Como dizia um humorista brasileiro, o perigo de uma meia-verdade é dizer-se exactamente a metade que é mentira…
Quanto aos rendimentos, o Acordo Social firmado há dias é um bondoso desejo para um quadriénio. Sendo a evolução do nível salarial do Estado a bitola para aumentos nas empresas, importa perceber que, em média, os aumentos previstos na Administração Pública (AP) estão francamente abaixo da taxa de inflação deste ano, ainda que se reconheça que se deve ser prudente nos efeitos de aumentos salariais sobre os preços. Acresce que, embora aplaudindo a justa subida não só do SMN, como das carreiras menos diferenciadas, o que foi anunciado prolonga a ‘agonia’ de uma AP descapitalizada e menos qualificada, pois que para carreiras de direcção ou de maior exigência técnica há uma manifesta perda de poder de compra (aumento nominal de 2%) e uma incapacidade competitiva com o sector privado.
Quanto à actualização das pensões, o tal bónus único de meia-pensão pago este mês é uma forma capciosa e injusta de diminuir em 50%, o valor da actualização em 2023, e consequentemente, o valor da pensão de 2024 e anos seguintes que resulta da lei em vigor, assim se transformando num malus definitivo. Recordo-me do que António Costa disse quando se soube do propósito de redução de 600 milhões no tempo da troika. Pois agora não são 600 milhões: são 1000 milhões em anos sucessivos a partir de 2014. Argumentou-se com a preocupação de salvaguardar a sustentabilidade a longo prazo do sistema público de pensões. É um propósito indiscutível, ainda que, há muito pouco tempo, o Governo alardeasse a boa saúde da Segurança Social (que, aliás, vai ter este ano um saldo positivo à volta de 2,5 mil milhões). Disse a ministra da pasta que, caso se actualizassem as pensões nos termos legais, se anteciparia de uma década a ruptura do sistema! Pois bem, num anexo do Relatório do OE 23 sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social, aliás bem feito, a projecção da conta do sistema previdencial para 2060 evidencia que o FEFSS (Fundo de Estabilização Financeira da SS) ainda é capaz de compensar os défices anuais a partir de 2040 (entre 0,3 e 0,8% do PIB) atingindo 34,3 mil milhões de euros correspondentes a 9% do Produto e a 112,8% da despesa anual com pensões. Em que ficamos?
Duas notas finais: a poupança continua a ser a grande enjeitada da economia. Com taxas de aforro manifestamente baixas e insuficientes (com o consequente endividamento da economia), a taxa liberatória de 28% sobre juros de depósitos e outras aplicações (recordo que até 2020, era de 20%, pelo que a oneração fiscal aumentou desde então 40%, ou seja 8 pontos percentuais, de 20% para 28%) mantem-se inalterada e é igual para o pequeno aforrador, para o grande accionista ou para o sofisticado especulador. Acresce que, com uma taxa de inflação muito superior aos rendimentos nominais recebidos, os tais 28% acabam por, em termos reais, atingir o próprio capital. Suspeito, porém, que, na discussão parlamentar, este assunto despenda menos tempo do que o IVA sobre os ingressos nas touradas ou afins.
Por fim, uma constatação de Mr. De La Palice, que aqui refiro porque as pessoas menos avisadas podem não se dar conta dela. É que, mesmo baixando a taxa de inflação, como se espera e deseja, os preços, que agora subiram, não descem… É por isso que a opção de redução de taxas do IVA ou noutros impostos indirectos para certos bens pode ser mais duradoura do que a subsidiação pontual do consumo (por exemplo, o falado cheque de 125 euros neste ano, não se prolonga em 2023, apesar de os preços não descerem). Nas 444 páginas do Relatório e nas 345 páginas da Proposta de Lei Orçamental (onde, cada vez mais, tudo cabe em forma de salsicha legiferativa), esta ‘lapalissada’ é ignorada…
*Ex-ministro das Finanças