António Ribeiro. Tarzan da Caparica lutava contra as ondas

António Ribeiro foi nadador-salvador na Costa da Caparica durante quatro décadas. Com espírito de missão, foi buscar mais de 300 pessoas ao mar revolto. A coragem e a velocidade com que nadava valeram-lhe o título de Tarzan. Fazia 100 anos este mês.

Não se trata do herói dos filmes de Hollywood, que fizeram furor no princípio do século passado, mas sim de um corajoso português, cujas façanhas na vida real são dignas de lembrar.

Nasceu a 7 de outubro de 1922 e toda a sua vida foi dedicada ao mar. Filho de uma família muito humilde, viveu numa barraca no centro da Costa da Caparica – o seu berço era um caixote e o pijama uma saca com três buracos, um para a cabeça e outros dois para os braços – e nunca foi à escola primária porque tinha de ajudar o pai na pesca, era a sobrevivência da família que estava em causa. Não teve tempo para ser criança. A pobreza, as privações, dizia que não passou fome, a fome é que passou por ele, e a permanente luta pela sobrevivência deram-lhe uma vontade férrea de vencer a adversidade.

Saiu de casa ainda muito jovem, aos 14 anos, e foi para a Lagoa de Albufeira onde, no inverno, ganhava a vida como pescador. Quando tinha tempo, palmilhava quilómetros pelas praias com uma saca de serapilheira às costas na expectativa de encontrar qualquer coisa de valor que pudesse vender e ganhar dinheiro para comprar farinha de milho para o seu sustento.

Durante a época balnear, foi banheiro até ao dia em que venceu uma prova de natação na Costa da Caparica e foi contratado para nadador-salvador da colónia de férias da FNAT (atual INATEL). Era um trabalho longo e árduo. Levantava-se às três da manhã para armar toldos e barracas, depois vigiava a praia e, no final do dia, recolhia o equipamento usado pelos banhistas. Como gostava muito de crianças, ainda arranjava tempo para ensinar os mais novos a nadar.

Nos anos 40, os postos de vigia ficavam à guarda do banheiro que prestava serviço na praia. Na melhor das hipóteses, esses postos dispunham de duas boias grandes, duas boias pequenas, dois cintos de salvação e, finalmente, um quadro explicativo dos primeiros socorros a prestar aos náufragos. A vigilância com embarcação foi-se estendendo lentamente ao longo da costa, mas, só no final da década de 60 e princípio dos anos 70, o apoio às praias teve uma projeção digna desse nome. Hoje em dia, pode ser cool ser nadador-salvador, mas naquela época era missão de risco, que exigia grande robustez física e valentia.

 

O Príncipe das marés

Nunca teve medo do mar e, aos 17 anos, nadava mais rápido do que os atletas do Algés e Dafundo. O clube quis contratá-lo, mas não aceitou dizendo que não tinha dinheiro para comer quanto mais para as passagens que custavam, na época, oito tostões.

Era capaz de nadar ao lado dos golfinhos entre a Caparica, onde vivia, e a Cova do Vapor, onde ia beber um pirolito (famosa bebida da época) com os amigos depois do trabalho. Fazia isso frequentemente, num abrir e fechar de olhos, para espanto de muita gente que o via desaparecer no mar e voltar pouco depois. Impressionado com o seu arrojo, um banhista decidiu um dia oferecer-lhe uma caixa de pirolitos.

A determinação com que enfrentava o mar bravio e traiçoeiro, e as suas poderosas braçadas, foram ganhando reputação e, em 1939, começou a vigiar sozinho o extenso areal da praia de São João, muito frequentada durante os meses de verão por pessoas de Lisboa. A sua simplicidade, dedicação e dotes de excelente nadador granjearam-lhe a simpatia, amizade e o respeito dos banhistas, havia quem viesse de outras praias só para  conhecer o Tarzan.

O trabalho de um nadador-salvador passa muito pela prevenção “as pessoas dirigiam-se ao meu pai a perguntar se podiam e onde podiam tomar banho. Quando apitava todos olhavam para ele e seguiam os seus acenos com o boné” diz com imenso orgulho o filho Eduardo Ribeiro, de 77 anos, que herdou do pai aptidões físicas que lhe permitiram ser futebolista sénior de «Os Belenenses», CUF e Cova da Piedade.

 

Mais de 300 salvamentos

Empoleirado no escadote de vigia, dominava toda a praia nas horas do banho – houve tempos em que na colónia de férias havia horas específicas para estar na água. A sua mulher Germana leva-lhe o almoço e ficava a seu lado nas longas horas de vigia. Nunca virou costas ao mar e enfrentava as ondas sem medo. Nadava com quantas forças tinha para salvar pessoas que não conhecia, pois essa era a sua profissão.

Tarzan sabia que as praias da Costa eram perigosas devido à fúria incontida das ondas e aos agueiros, e não queria que as águas engolissem os veraneantes mais desafortunados ou inconscientes. Sempre que a maré enchia e alguém era enrolado por ondas de grande dimensão e gritava por socorro, corria por entre os banhistas e fazia-se ao mar agarrado a uma boia grande, pois na altura não havia barbatanas, nem braçadeiras e os barcos de borracha eram uma miragem. Era tudo feito à força de braços e de muita coragem “ele tinha grande ligação ao mar e viveu para ser nadador-salvador. Conhecia as manhas do mar e era valente a resgatar vidas que pareciam perdidas” lembrou o filho.

Em 40 anos, fez mais de 300 salvamentos – só num dia tirou 16 pessoas do mar – e nunca houve uma morte, será, porventura, o único nadador-salvador que nunca deixou ninguém no mar. O seu pai, que tinha deixado a pesca para ser coveiro, disse-lhe um dia que estava a estragar o seu negócio porque ganhava cinco escudos por cada enterro que fizesse. O único que foi tragado pelo mar foi um cidadão espanhol, isso aconteceu no dia em que Tarzan não estava de vigia porque tinha ido a Lisboa.

Durante a sua longa vida de banheiro e nadador-salvador, teve várias condecorações: recebeu a Cruz Branca a bem da Humanidade dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique e a Medalha de Ouro de Mérito e Dedicação da cidade de Almada. “Foi uma pessoa invulgar. Não frequentou a escola, mas era doutor na área do mar” fez questão de salientar o filho.

Além da sua extraordinária vocação para nadador-salvador, Tarzan confecionava caldeiradas de alto coturno muito apreciadas pelos amigos pescadores que manteve pela vida fora.

Reformou-se em 1990, mas não se afastou do mar. Os últimos anos de vida foram mais tranquilos e dedicou-se a fazer artesanato com as conchas e búzios que apanhava na praia. António Ribeiro morreu no dia 26 de agosto de 2006, com 84 anos. Pouco tempo antes sua morte disse “posso morrer tranquilo porque salvei muitas vidas”, por essa razão continua bem vivo na memória coletiva da Costa de Caparica.