por Nuno Cerejeira Namora
Advogado Especialista em Direito do Trabalho
No dia anterior ao da entrega do Orçamento de Estado para 2023, o Governo conseguiu, como num passe de mágica, depois de meses de negociações que pareciam destinar-se ao fracasso, fechar na Concertação Social aquilo a que chamou o ‘Acordo de Médio Prazo de Melhoria dos Rendimentos, dos Salários e da Competitividade’. Este acordo foi celebrado num momento de profundas incertezas quanto ao futuro de Portugal, da Europa e do Mundo. Além da incerteza, é celebrado perante um transversal contexto de pessimismo quanto à trajetória das condições económicas, sociais, políticas e até históricas do nosso entorno civilizacional.
Não obstante os tempos incertos que se avizinham, o Governo conseguiu passar para o papel, com a assinatura das confederações patronais e da UGT, a antiga promessa eleitoral de António Costa: atingir o valor médio da União Europeia no que toca ao peso das remunerações no PIB (48,3%). Este indicador traduz o valor dos salários e das contribuições pagas face ao valor global da riqueza produzida num ano. Assim, quanto mais próximo estiver este indicador dos 50% melhor será, tendencialmente, a distribuição e o equilíbrio da riqueza entre os fatores trabalho e capital. Sem negar a importância deste número, parece me, contudo, que o acordo agora assinado o tenha como base é criticável.
Realmente, o peso relativo das remunerações no PIB nada diz, uma vez que não assegura de que modo devem as remunerações crescer nem como se deve distribuir esse crescimento. Na verdade, é possível equacionar que o Governo vá dar o grosso do contributo para alcançar o objetivo a que se propõe simplesmente por via do aumento (a que os empregadores não podem escapar) do salário mínimo, que deverá chegar aos 900 € mensais em 2026 (em 2023 sobe os 760, em 2024 para os 810 € e em 2025 para os 855).
Contar que os empregadores valorizem os demais salários nos termos acordados (+ 5,1% em 2023, + 4,8% em 2024, + 4,7% em 2025 e + 4,6% em 2026, ou seja, um global de 19% em 4 anos) é uma pura questão de fé. O mais provável é que os salários cresçam a abaixo destes objetivos e que, em 2026, o salário mínimo esteja perigosamente próximo do salário médio (que, em junho de 2022, se fixava em 1.059).
É bom que se diga a verdade agora para mais tarde evitar lamentos: se o Acordo de Rendimentos falhar e se o salário mínimo continuar a subir e for desacompanhado de um crescimento real e significativo do salário médio (na casa dos 20% propostos), estaremos no ponto certo para uma rutura de consequências explosivas, com o deslaçamento do tecido social.
Ora, se o primeiro sinal de que este se trata verdadeiramente de um acordo de fé é a sua construção em torno do peso das remunerações no PIB, o segundo sinal são os pressupostos irrealistas de que o acordo parte. Ei-los: inflação de médio prazo (2022/2026) de 2%, crescimento médio da produtividade de 1,5%, verificação do cenário macroeconómico do Orçamento de Estado de 2023 (crescimento de 1,3% e inflação de 4%) e verificação dos pressupostos do Programa de Estabilidade 2022-2026. Só por fé, saber se de boa ou má é outro tema, se pode assinar um acordo com base em pressupostos que são, no mínimo, de um otimismo inveterado. Na verdade, são pura especulação e demagogia.
Se não vejamos: ainda em a 13 de outubro se fazia manchete nos jornais de que Portugal e Alemanha (o motor da economia europeia) haviam atingido uma inflação recorde em 30 anos. No caso português, a taxa inflação homóloga fixou-se nos 9,3% e a taxa de inflação média a 12 meses nos 6,0%, dois pontos percentuais acima do estimado pelo Governo para o próximo ano. Como se não bastasse, tanto a Alemanha como o Reino Unido já anunciaram que antecipam uma recessão económica em 2023, avisos secundados e agravados pelo Fundo Monetário Internacional, que veio, em 12 de outubro, anunciar uma previsão de diminuição do crescimento global para 2023, advertindo que o «pior ainda está por vi e, para muitas pessoas, 2023 parecerá uma recessão», acrescentando que a economia caminha em direção a ‘águas tempestuosas’ em todo o mundo.
O cenário de recessão ou, pelo menos, de abrandamento do crescimento é agravado pelas previsões quase certas de que as taxas de juro vão continuar a aumentar como resposta de política monetária à taxa de inflação.
Com pressupostos económicos tão ‘líricos’, praticamente impossíveis de alcançar, será fácil – e todos estão perfeitamente cientes disso – justificar o incumprimento dos objetivos fixados no que toca aos aumentos da massa salarial. E, quando assim for, não restará ao Governo outra hipótese que não ser ainda mais ambicioso no apoio económico, fiscal e de contexto às empresas. Até lá, porém, vai ressuscitar o fantasma da austeridade.
Aí, uma vez mais, a esquerda perde a maioria e a ‘direita’ será chamada para voltar a fazer sair o país da crise.