A convivência torna-se cada vez mais complicada num Brasil polarizado, onde todos temem que ecluda violência após a segunda ronda das presidenciais, já este domingo. No que toca a Jair Bolsonaro, que tem deixado bem claro que não aceitará uma derrota eleitoral, tem dedicado os últimos momentos da campanha à colisão frontal com o Tribunal Supremo Eleitoral, mais uma vez. O Presidente brasileiro acusa o TSE de não levar a sério um alegado boicote à sua propaganda institucional em rádios do nordeste, região onde a vantagem de Inácio Lula da Silva nas sondagens é mais notória.
Os receios de que Bolsonaro tente um golpe de Estado, caso perca as eleições, não foram acalmados pelo facto de ter chamado os três comandantes das forças armadas para uma reunião ministerial, esta quinta-feira. A convocatória foi surpresa, servindo para discutir as críticas ao Tribunal Suprema Eleitoral.
O Presidente brasileiro recusou responder a perguntas dos jornalistas à saída da reunião. Mas o que se falou lá dentro foi em linha com a estratégia da campanha de Bolsonaro, avançou a Folha de S. Paulo. Ou seja, explorar o caso das rádios “para reforçar a tese de que o Presidente foi prejudicado e não enfrentou um pleito equilibrado contra o petista”, explicava.
Num Brasil em que o porte de arma foi liberalizado por Bolsonaro, não é difícil imaginar que a disputa política se traduza em violência, caso apoiantes do Presidente se sintam defraudados.
“Sempre houve essa preocupação. Mas também importa não criar alarmismo”, salienta Ana Paula Costa, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA) e vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa, ao i. “Também para as pessoas se sentirem seguras de ir votar e em confiar nas instituições do Brasil”, explica.
Tensões no condomínio, no Whatsapp, nas ruas
Nas ruas do Brasil, a tensão política é visível. Mesmo as reuniões de condomínio se tornaram um campo de batalha, com cada vez mais brasileiros a usar a fachada dos seus prédios como se fosse um outdoor. Estendendo bandeiras vermelhas, cor do Partido Trabalhista (PT), ou do Brasil, associadas a Bolsonaro, muitas vezes irritando os vizinhos. Aliás, a Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios (AABIC) até registou um aumento nas reclamações, avançou o Estadão. Tendo subido a um nível comparável ao do isolamento devido à covid-19, quando havia mais teletrabalho e surgiam mais atritos.
Já nos grupos de Whatsapp, tão populares no Brasil, até famílias têm tentado impor regras para evitar brigas, muitas vezes sem grande sucesso. “A maioria da minha família apoia o Bolsonaro. Só eu e mais umas cinco pessoas não”, lamentou o fotógrafo Almir Vargas, à conversa com a Folha de S. Paulo. Ainda tentou criar o grupo “Vovós Sem Política”, mas não demorou a surgir confusão. “É muito ruim ler certas coisas no grupo e ficar calado”, queixou-se.
O pior é quando é derramado sangue, como no caso de Roberto Jefferson. Este deputado carioca, que após ser preso como um dos cérebros por trás do Mensalão – o escândalo em que se descobriu que dirigentes do PT andavam a comprar votos de legisladores do Centrão como Jefferson – se transformou num dedicado bolsonarista, decidiu que não voltaria a ser detido. E, quando foi alvo de um mandato de busca assinado por Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, por integrar o chamado “gabinete de ódio” de Bolsonaro, disparou mais de cinquenta tiros de uma espingarda de calibre 5.56 contra uma camioneta blindada da polícia, esta semana. Atirando três granadas e ferindo agentes.
“Se quisesse, matava os policiais, pois estava em posição superior e com fuzil na mira”, justificou Jefferson no seu testemunho, após ser detido, segundo o Correio Braziliense. E assumindo estar na posse de mais de vinte armas legais.
O problema é quando querem mesmo matar. “Todo o tipo de violência, tanto de violência política ou de assédio, têm vindo de uma radicalização do Bolsonaro, na larga maioria dos episódios”, considera Ana Paula Costa. “Tivemos um ou outro caso que veio da parte de eleitores do PT. Todos os outros vêm da base de apoio do Bolsonaro”.
“Essa radicalização do discurso vem sendo construída ao longo destes últimos quatro anos. E têm-se materializado nas eleições, que é um momento que o Bolsonaro sabe que tem risco de perder”, assegura a investigadora do IPRI. O risco desse discurso de Bolsonaro é o que isso autoriza, porque o Presidente é muito agressivo na fala, com as instituições e a população”, remata. “Os episódios violentos vêm pelas falas dele e são feitos pela própria população. Esse é o principal problema”.
No que toca aos ataques mais recentes às instituições, nos últimos dias destacou-se o relatório apresentado pela campanha de Bolsonaro sobre rádios nordestinas, que “pode incitar uma radicalização neste período final”, salienta Costa. Dando mais uma justificação para o Presidente recusar os resultados eleitorais.
De facto, as rádios continuam a ser influentes no Brasil, sobretudo entre “a população mais velha, que é também o eleitorado do Bolsonaro”, explica a investigadora. “Os mais velhos ouvem mesmo como meio de informação, não é como a gente que ouve aqui e ali, no carro”.
Contudo, o relatório tem sido descredibilizado pelo TSE e pela imprensa brasileira, até por só se basear nos dados da Audiency, uma empresa de monitorização de rádios que só apanha streaming na internet. Sendo que, por lei, “anúncios e o horário eleitoral são obrigatórios apenas nas transmissões de rádio, não na reprodução em streaming na internet”, explicava a G1. Já os advogados da campanha de Bolsonaro explicaram que só apresentaram provas tão incompletas por terem apresentado a queixa “em regime de urgência”, avançou a Veja.
Vários comentadores notaram que o relatório sobre o alegado boicote a Bolsonaro no nordeste surgiu dois dias após a detenção de Jefferson, que arriscava minar a narrativa bolsonarista de que são a favor da proteção da polícia. Já Lula troçou disso, notando que o seu adversário está “um pouco desesperado”. Contudo, o certo é que está tudo em aberto para este domingo, sendo a margem do petista tão curta, só com 53,2% das intenções de voto, segundo a Atlas Intel. E é difícil esquecer o falhanço atroz dos institutos de sondagens durante a primeira volta, subestimando a votação do Presidente brasileiro.