Durante anos a fio, a Carla cuidou da sua "menina Olinda", como carinhosamente a tratava e trata, e esteve do lado da mesma até ao último momento. Exatamente a mesma coisa fizeram a Cláudia e a Sílvia, que acompanhou cada passo do João. E a Soraia. Não me posso esquecer de mencionar a Regina e o Carlos. E quem fala destes grandes cuidadores fala de muitas mais pessoas, como a Maria dos Anjos, a Estefânia, e tantas outras pessoas – incluindo eu, ainda que o jornalista não tenha de ser notícia, como devo salientar – cujos nomes são menos conhecidos: no entanto, igualmente reconhecidos. Mas também existem casos que, felizmente, ainda não tiveram um desfecho, como o do pequeno Gonçalinho e, por isso, a Tânia, todos os dias, levanta-se e dá o seu melhor por ele. No entanto, como é que estas pessoas viveram, vivem e/ou viverão sabendo que puseram, põem e/ou continuarão a pôr a vida em espera para cuidar daqueles que mais amam?
A resposta não é fácil e depende de cada um, mas a maioria dos cuidadores informais costuma aliar o fator do amor ao da irresponsabilidade estatal. São os dois simples, mas comecemos por desmistificar o primeiro: em novembro de 2020, a Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI) avançou que o número de cuidadores informais, em Portugal, rondava 1 milhão e 400 mil pessoas, isto é, um valor impulsionado pela pandemia, essencialmente devido ao fecho das respostas sociais e esse número vai crescendo cada vez mais.
Segundo os dados veiculados, em 2017, pelo investigador Bruno Alves, e citados na obra ‘Cuidar de Quem Cuida’ – lançada em setembro de 2020 e da autoria do deputado José Soeiro, da socióloga Mafalda Araújo e de Sofia Figueiredo, da ANCI, em 2017, o valor económico estimado dos cuidados informais correspondia a 4 mil milhões de euros anuais, equivalentes a aproximadamente 333 milhões de euros mensais.
No início de outubro, depois de tantas lutas travadas, os cuidadores informais tiveram de se juntar na escadaria da Assembleia da República e tal quase não constituiu notícia nos órgãos de informação. Porquê? Não nos esqueçamos de que, em fevereiro deste ano, ainda que o valor base do subsídio do cuidador informal devesse manter-se igual ao indexante dos apoios sociais (IAS), que correspondia a 443,20 euros este ano, previa-se que o número potencial de famílias abrangidas crescesse. De acordo com uma portaria publicada em Diário da República, o cuidador informal principal teria acesso ao respetivo subsídio de apoio se o rendimento de referência do agregado familiar fosse inferior a 576,16 euros.
A vice-presidente da ANCI disse, à época, que o valor do subsídio era reduzido e criticou que o valor de referência do rendimento do agregado familiar tivesse aumentado. “Isto ainda vai considerar menos famílias com subsídio de apoio”, afirmou Maria dos Anjos Catapirra. A dirigente deixou igualmente claro que “continua por definir, apesar de já ter sido muitas vezes pedido, como vai funcionar o descanso do cuidador”, pois a portaria somente contempla o subsídio de apoio.
O portal eportugal informa-nos que “entende-se por ‘descanso do cuidador’, no âmbito da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), o conjunto de intervenções que providenciem períodos de alívio ou descanso efetivo aos cuidadores, libertando-os temporariamente das atividades inerentes à prestação de cuidados”. Tendo “por objetivo reduzir a sobrecarga ou a quantidade de cuidado providenciado pelos cuidadores e possibilitar a restituição das suas energias, tratar de assuntos pessoais e/ou de saúde, etc.”, a medida pode ter a duração máxima de 90 dias por ano e este descanso “é proporcionado através do internamento temporário da pessoa dependente”. Nas tipologias de Saúde Mental, como nas Residências de Apoio Moderado (RAMO) e Residências de Apoio Máximo (RAMA), o período máximo é de 45 dias por ano.
A pergunta que se coloca é: existe algum cuidador informal, digno desta terminologia, que não necessite deste descanso? É que nem sempre temos familiares que colaboram connosco, os cuidadores formais têm de ser devidamente recompensados a nível monetário e existem muitas mais coisas em jogo… Mas continuemos. Em agosto de 2021, há apenas um ano e três meses, o subsídio de apoio ao cuidador informal chegara a somente 383 pessoas: não temos de ser especialistas em Matemática para sabermos que milhares e milhares de cuidadores informais não estavam a ser ajudados. Segundo o relatório final de avaliação e conclusões da implementação desta e de outras medidas, elaborado por uma comissão presidida pela Segurança Social, até maio daquele ano, tinham sido recebidos 2198 pedidos de reconhecimento do estatuto (ECI).
Destes, 1724 (78%) diziam respeito à tentativa de reconhecimento de cuidadores principais com direito a subsídio. Acabariam, até àquele momento, por ter o reconhecimento como cuidador informal 977 pessoas, 797 das quais como cuidadoras principais. À sua vez, 474 (22%) correspondiam ao cuidador informal não principal. Friso que não podemos deixar de ter em atenção que no estudo ‘Medidas de Intervenção junto dos Cuidadores Informais’, datado de setembro de 2018, é possível concluir que o trabalho dos cuidadores vale, aproximadamente, 333 milhões de euros por mês: isto é, 4 mil milhões de euros por ano. Este estudo foi encomendado pelo Governo e serviu de suporte à decisão política, bem como à chegada de um consenso. E, assim, em julho de 2019, foi aprovado, por unanimidade, o estatuto do cuidador informal.
No Parlamento, o texto “da comissão de Trabalho e Segurança Social que define medidas de apoio ao cuidador informal, que resultou de uma proposta de lei e de contributos de vários partidos” foi aprovado em votação final. Entre outras medidas, ficou definido um subsídio de apoio aos cuidadores, o descanso e como será traçada a carreira contributiva dos mesmos. Também houve a inclusão do Estatuto do Cuidador Estudante: para os cuidadores mais jovens que tratam de familiares e não têm emprego possam continuar o seu percurso escolar, ou seja, como se tivessem um contrato de trabalho para efeitos de exames e faltas.
Importa referir que foi introduzido o conceito de cuidador familiar, portanto, junta-se aos de cuidador formal – pessoa responsável pelos cuidados de saúde e serviços sociais relativos a um dependente mas que é remunerado – e o de cuidador informal – que provê cuidados no âmbito de um relacionamento e não recebe qualquer remuneração. O estatuto viu a luz do dia graças ao entendimento partidário de esquerda. Contudo, contou com contributos do PSD, do CDS-PP e do PAN.
Tudo isto é importantíssimo, mas a Carla, a Sílvia, a Maria dos Anjos, a Estefânia, a Tânia, a Cláudia, a Soraia, a Regina, o Carlos e mais (cerca de) 1.4 milhões de portugueses continuam a deitar-se e a acordar, todos os dias, sem saber aquilo que o futuro lhes reserva. A eles, àqueles que mais amam e aos futuros cuidadores e das pessoas cuidadas. Como diria a Carla (e bem!), temos de cuidar de quem cuida: da saúde física, da saúde mental, da carreira contributiva… Por isso, não estará na altura de seguirmos exemplos de países como a Noruega, a Suécia, a Suíça, a Alemanha ou o Canadá e algo mudar?