Relatórios das autópsias com atrasos de seis meses

Instituto de Medicina Legal ‘está debaixo de fogo’, sem pessoal para responder às solicitações, mas garante que tem vindo a recuperar nos atrasos desde 2016.

Os resultados das autópsias estão a demorar seis e mais meses a chegar aos seus destinatários. De acordo com dois médicos especialistas em Medicina Legal com os quais o Nascer do SOL falou, as razões prendem-se com a falta de pessoal (médicos e peritos), assim como com o excesso de trabalho. Enquanto isso, outros dois clínicos encaram sem qualquer estranheza tais atrasos, adiantando que tudo depende das zonas do país a considerar.

«Eu não tenho tirado baixas como alguns dos meus colegas, tento estar sempre com o trabalho em dia e, mesmo assim, tanto eu como os meus peritos não conseguimos que os relatórios saiam a tempo e horas. Precisamos de mais pessoal, isto não pode continuar assim», diz um médico legista da zona de Lisboa, que preferiu não revelar a sua identidade por temer represálias.

«Trabalho há muitos anos no Instituto de Medicina Legal e as coisas não estão más apenas agora: tudo tem vindo a descambar há mais ou menos duas décadas. Não venham com desculpas porque estamos com poucas e más condições e ninguém faz nada. Os sucessivos governos não querem saber de nós para nada», sublinha, lamentando as condições laborais que tem praticamente desde o início da carreira. «Não é o próprio instituto que tem culpa, é o Estado», frisa o profissional de saúde.

«Sim, é verdade que temos demorado mais do que devíamos a entregar os relatórios porque temos cada vez mais médicos de baixa e outros a desistir. E que ninguém nos aponte o dedo porque temos quase feito omeletes sem ovos nos últimos anos», conta um colega da zona Norte que, à semelhança do de Lisboa, também não pretende assumir a identidade. «Já ouvi falar de atrasos superiores a seis meses, inclusivamente. Por isso, nenhum número que me seja dito será uma surpresa para mim».

Já outros dois médicos da zona Sul manifestaram posições contrárias, justificando a demora nos relatórios.

«Os relatórios levam o seu tempo. Dependem de exames complementares que também demoram. Os meus relatórios não estão muito atrasados», declara destes últimos, que igualmente solicitou o anonimato. «Logicamente, se definirmos que um relatório tem de sair em 30 dias, teremos todos eles atrasados. Se definirmos que um relatório tem de sair em seis meses estarão todos em dia. Por isso, é relativo. Em alguns lugares, parece que a situação está mais caótica, como aqueles que têm mais volume. Lisboa, por exemplo».

«Lisboa e Porto são duas cidades em que nenhum médico legista gosta de trabalhar, mas não significa que não se consiga levar tudo a bom porto como nas outras. Acho que estes relatos que se têm ouvido podem ser um bocadinho exagerados, mas não vou tomar partido porque não estou em todas as delegações a assistir a tudo aquilo que se passa», explica outro médico ouvido pelo Nascer do SOL. «Espero que, se tal for verdade, o problema se resolva o mais rapidamente possível porque em casos complexos como o de homicídio esperar seis ou mais meses pode ser uma tortura».

Contactado pelo Nascer do SOL e confrontado com a existência de atrasos de meses nos relatórios das autópsias, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses começou por afirmar que «estabeleceu como seu primeiro objetivo a recuperação do elevado número de pendências que existiam no passado», sendo que «havia processos que demoravam 2, 3 ou mais anos para ser concluídos».

«No final de 2021 foi conseguida uma recuperação de cerca de 85% nos atrasos relativamente ao final de 2016: de 5682 processos pendentes no final de 2016  para 827 processos pendentes no final de 2021. Constituiu o menor número de pendências desde a criação do INMLCF. O processo de recuperação de pendências por parte do INMLCF mereceu ser finalista e ter recebido Menção Honrosa no Prémio de Políticas Públicas 2019 do ISCTE», redigiu, acrescentando que «naturalmente que, em cerca de mais de 200 000 perícias que o INMLCF realiza anualmente, há casos de maior complexidade que exigem exames complementares laboratoriais mais morosos e que por vezes têm de ser repetidos».

«Também há alguns casos em que o médico que fez a autópsia ficou de baixa médica prolongada o que motivou o atraso na entrega do relatório de autópsia pois, de acordo com as boas práticas médico-legais, deve ser o próprio médico que fez a autópsia e observou as lesões a elaborar o relatório, não devendo ser substituído por outro», observou o INMLCF na pessoa de Francisco Corte Real. «Mas trata-se de situações pontuais que são sempre resolvidas, pois o INMLCF monitoriza mensalmente todas as pendências em todos os seus serviços relativamente a todos os seus peritos médicos», concluiu.

 

Governo e INMLCF alinhados

Em agosto passado, a ministra da Justiça fez um balanço «muito positivo» de uma visita ao INMLCF. «No final de 2021 e após uma recuperação de 85% relativamente aos números de 2016, as pendências eram residuais. Efetivamente, o seu número era o mais baixo desde a criação do instituto», afirmou a governante, indo ao encontro da informação transmitida por Francisco Corte Real. «Com a atividade pericial do instituto a aumentar significativamente nas últimas duas décadas – das cerca de 85 mil perícias, no início dos anos 2000, para as mais de 200 mil perícias atuais – e que, durante algum tempo, os meios humanos e materiais disponíveis não puderam acompanhar, gerou-se um número de pendências às quais era urgente dar solução», adiantou, lembrando que para esta superação de 85% «contribuiu decisivamente (…) a mobilização e capacidade de resposta interna, que resultaria, designadamente, na criação de uma Unidade de Acompanhamento da Produção Pericial, responsável por monitorizar mensalmente o volume pericial produzido e as pendências» a nível nacional.

«Encontramos esta capacidade de superar também ao nível da resposta às situações de catástrofe e, em especial, muito recentemente, no contexto da pandemia (…), quando o INMLCF criou um Laboratório de Virologia», integrado na Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico Laboratorial da covid-19, indicou a ministra, acrescentando que o instituto «iniciou a realização das inovadoras autópsias virtuais» e foi capaz de «responder sem ruturas ao muito elevado número de cadáveres, no gravíssimo contexto que todos tristemente recordamos».

«Uma tal vocação de superação também se tem feito acompanhar pela disponibilização de mais meios, disponibilização em que o Ministério da Justiça tudo fará para continuar a investir», declarou, tendo evidenciado que no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) «está previsto um investimento total de 3,7 milhões de euros para a modernização dos sistemas e equipamentos» da Medicina Legal.

Enquanto isso, famílias, seguradoras, autoridades de investigação, tribunais e por aí fora vão ter que continuar a aguardar meses pelos relatórios das autópsias, com todas as consequências daí resultantes, a começar pelas emociais, sociais e económicas, que muitas vezes atingem uma dramática dimensão.